domingo, 31 de março de 2013


TRIBUNA – 02/10/1912

PRIMEIRAS REPRESENTAÇÕES

“Quem não perdoa”, no Municipal – Inauguração do Teatro Nacional

Devem estar contentíssimos, há esta hora, todos aqueles que se bateram em favor de mais essa tentativa de reorganização do teatro nacional. O espetáculo que fez ontem o début da companhia brasileira subvencionada e, de outro lado, inaugurou a temporada oficial do nosso teatro foi já o bastante para colocar a parte a certas dúvidas e incertezas, garantindo ainda um sucesso que ninguém, mais contestará.
O Municipal encheu-se au complet, apresentando a sala, se não um aspecto brilhante, ao menos belo, na simpleza do traje de quantos – cavalheiros e senhoras – lá foram. Não é que o discreto aviso da direção da companhia ou de outrem que não importa agora cumprissem-no todos, achando desnecessários para os atuais espetáculos do nosso melhor teatro os decotes e as casacas. Estas como aqueles lá estavam entretanto, espalhados aqui, ali e acolá, na plateia, nas frisas e nos camarotes...
O interessante é que, de uma arrogância única sempre esses decotes e casacas, ontem se sentiam também muito à vontade; e era belo de ve-los, ora fazendo paradoxo (ilegível) em vozes altas, e formulando ideias, de parceria com simples frack ou paletó comum, ora em gargalhadas entremeando dissertações galantes e sobre a moda no momento, feitas com humor por um leve vestido de passeio ou desses dos sábados na Avenida...
Acredito por isso que toda aquela gente que ontem foi ao Municipal não o fizesse por snobismo, como é veso nosso, tratando-se da estreia de uma companhia no Elephante branco. É muito alto o sentimento a que cedeu a nossa sociedade assistindo à récita inaugural de mais uma tentativa de reorganização do teatro brasileiro...
E porque tudo isto se desse muito naturalmente, pode alguém que não um pessimista afirmá-lo, essa tentativa, de um início vitorioso, na confiança ainda do seu melhor futuro, enfim do nosso teatro...
Sem mais, isto é, não recordando fatos de ligações diretas com a temporada atual, alguns deles, aliás que julgo dessa temporada mesma, passo ao espetáculo de ontem, à peça que o fez, enfim. Quem não perdoa, tal o seu título, da ilustre escritora D. Julia Lopes de Almeida, foi, dentre os originais apresentados ao último concurso da Academia Brasileira, o escolhido para o début da companhia organizada pelo Sr. Eduardo Victorino com uma subvenção da Prefeitura do Distrito Federal. Quem não perdoa é isto, num resumo feito ao desenrolar da peça:
1º ato – Abre-se o velarium e a cena é uma sala de pobre mobília, vendo-se alguns quadros dependurados nas paredes, que mostram também os lugares de outros quadros retirados, não há bem tempo, para a venda a qualquer belchior, como se vem a saber de diálogos outros que não o primeiro da peça, feito por um velho comprador de móveis usados com um seu sobrinho e caixeiro. Este diálogo, em que depois toma parte a viúva Elvira, é vivo e interessa sobremodo, porque serve a uma cena de grande observação como a da venda por uma bagatela do antigo piano, companheiro melhor da D. Elvira nos seus mais gozosos tempos. Á saída do negociante e seu caixeiro, D. Elvira, para despedir-se do piano, vai tocar um trecho qualquer, e mal desenha a primeira frase é tomada de uma pura comoção estranha, caindo em lágrimas e soluços sobre o teclado. Nessa posição vem encontrá-la Ilda, filha única de D. Elvira, que a adora. Ilda percebe tudo e, julgando o momento oportuno, diz à sua mãe querer fazer-lhe uma confidência séria. E retira-se para o interior da casa, prometendo voltar. Nesse ínterim, chega uma senhorinha amiga, que felicita D. Elvira por haver sua filha obtido mais uma nova discípula, saindo em seguida. Ilda torna à sala e falando à sua mãe esta diz:
- Já sei!...nova discípula...
- Não, não é isso... E Ilda diz a D. Elvira que, dentro de meia hora, vinte, quinze, dez minutos, alguém lhe virá pedir a sua mão, dela Ilda. É um engenheiro, Gustavo, que encontrará na casa de umas suas alunas. Bem encarreirado na vida, ama-a muito como Ilda o ama também. Gustavo chega, enfim, e encontra D. Elvira sozinha. Um defronte do outro, esta, compreendendo-lhe o embaraço, disse já saber ao que vinha, expondo-lhe a seguir toda a sua vida e concluindo por pedir a Gustavo refletisse...esperasse a sua resposta, resposta de uma mãe que somente olha a felicidade de sua filha, por quem vive de pobreza e de sacrifícios... Gustavo sai, aparecendo logo Ilda, que vai de encontro a D. Elvira, abraçando-se ambas. Depois das primeira e segunda cenas que já disse vivas e de interesse, sobre serem de funda observação, esse ato fica somente de exposição da peça, podendo-se notar como defeituosa a cena entre D. Elvira e Gustavo, que é estafante, por quase sem diálogo e mais de indiscrições, porque não é sensato se acredite uma franqueza de um bom coração toda aquela história contada por D. Elvira.
3º ato – A casa de Gustavo após 12 anos de casado.
Tudo indica a plena prosperidade do engenheiro. D. Elvira entra do jardim e cuida das flores, distribuindo-as pelos vasos da sala; Ilda que aparece, vindo do interior da casa, diz-se atacada de nevralgia, pedindo a sua mãe fosse a cidade fazer umas compras e por ela – Ilda – tomar um chá na Cavé. Pequenas cenas, com as quais se sabe que Gustavo chega tarde em casa que ama a mulher do capitão Elias, declarando também a Elvira, numa delas, a Ilda, achá-la enigmática, apreensiva e concluindo por dar-lhe este conselho: “se por acaso ama a outro homem, deve fazê-lo de maneira que não o suspeite seu marido”. Novas cenas, e entra Fausto, que, ao contrário do que pensa Gustavo, isto é, de que aquele lhe vem advertir da sua infelicidade, fazendo a corte à mulher do capitão Elias, lhe previu falarem na rua dos amores de Ilda com um senhor a quem não conhece. Gustavo exaspera-se. Fausto acalma-o e convida-o a sair. Saem. Ilda despede todos os criados a vários lugares. Logo e logo aparece Ramires. Ilda recebe-o em silêncio. Fala-lhe e ouve-o no pouco que lhe diz Ramires, que se despede para longe. Ilda fecha a porta e espera... Ramires abraça-a por fim. Chega então Gustavo, que, louco, assassina Ilda e foge para o interior, pela porta por onde saíra Ramires. D. Emilia vem de fazer as compras. Pensa dormindo Ilda, mas ao enfrentá-la repara na sua deformação fisionômica, sacode-a, sente a morta... Chora, soluça...cai para trás.
É o segundo ato, o melhor da peça, incontestavelmente. Forte, vigoroso mesmo, de uma nota realista atroz, ele fica principalmente na cena violenta final. Nesse ato ainda há claros-escuros, meias sombras nos principais personagens. Não quero uma boa entrada, a de Fausto, que, sem nenhuma apresentação e sem também mostrar intimidade, fala a Gustavo e a todos superiormente.
3º ato – O júri vai absolver Gustavo. Na sua casa, amigos, esperam-no. Há cantos, prepara-se um discurso. Jacinto e Angela, tios de Gustavo, falam de tudo, com certa comicidade. Gustavo entra acompanhado de alguns amigos, inclusive o capitão Elias. Há a recepção esperada, depois da qual todos saem despedindo-se do serviço o empregado do escritório de Gustavo. Este fica pensativo sentado a um sofá, quando penetra na sala D. Emilia, de luto, e que, imediatamente fala a Gustavo. Diz-lhe coisas horríveis, repete-lhe as frases ditas antes do casamento.: “Seus olhos vigiariam a felicidade de Ilda como dois cães de fila”. Depois, arremete-se contra Gustavo, em cujo peito crava um punhal. Morto Gustavo, D. Emilia grita...é uma louca, corre a uma janela e diz-se assassina de um assassino...
O 3º ato é defeituosíssimo. São desnecessárias várias das suas cenas, algumas inconcebíveis. Pena é que para uma dessas haja escrito o maestro Alberto Nepomuceno um lindo trecho de música...
D. Julia Lopes de Almeida faz o teatro cruel, de Bernstein, da 1ª fase desse escritor, e de Hervieu. Do autor de Connais toi, então, tem a nossa talentosa patrícia muito na técnica e na maneira. Certo, o inovador das tragédias modernas é dos autores preferidos por D. Julia Lopes de Almeida. Os personagens principais de Quem não perdoa, em vários pontos, se parecem com os do grande dramaturgo francês. Não tem o desenho preciso e o estudo de alma profundo e evocativo tão próprios àqueles da Course de Flambeau e demais originais de Hervieu.
Quem não perdoa estava bem “decorada” pelos artistas que tiveram as responsabilidades dos seus papéis.
A Sra. Lucilia Peres e a Sra. Maria Falcão destacaram-se um pouco, bem assim o Sr. Ramos. Não estão eles para os meus maiores elogios. Faço-lhe com reservas. O Sr. Ferreira de Souza e a Sra. Luiza de Oliveira agradaram. Ramires, Sr. Alvaro Costa, merece de melhores cuidados. Os demais, pequenos papéis.
Os cenários são bons. O decorativo do 2º ato necessitava de mais sensatez de linhas nas figuras que são, por sua vez muito grandes. O do último ato é de um azul demasiado forte.

E. De M.


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