domingo, 7 de abril de 2013

"Uma bela realidade"


COMMERCIO – 06/10/1912

Folhetim do Jornal do Comércio
Dominicais

Mais uma tentativa em prol do Teatro Nacional. Mais uma... Desta vez, porém, todos dizem que, agora, sim; agora é que é a valer. E realmente, parece haver uma forte razão para que assim aconteça. Este empreendimento tem por si a boa vontade de todos os competentes. Tudo o que pode representar opinião, uma parcela de opinião autorizada e capaz de mais ou menos se impor, está ao lado do Sr. Eduardo Victorino, fazendo votos pelo triunfo completo dos seus esforços e das suas aspirações. O Sr. Eduardo Victorino tornou-se aquele excepcional, privilegiado empreendedor de quem ninguém diz mal. Os seus créditos seguramente se firmaram ao longo de muitos anos de trabalho nos teatros não subvencionados; as boas intenções que o animam, cada palavra sua e cada ato as provam, sem deixar a menor dúvida. Não lhe falta a inteligência nem a competência; tem a intuição e tem a prática. Na verdade, é o diretor ideal. E é um homem extraordinariamente feliz, porque, com todas as qualidades e recursos para vencer, por si, ainda encontra, por toda parte, simpatias que se lhe oferecem e só vê em torno amizades espontâneas, desejosas de auxiliá-lo. Devemos certamente notar que nem sempre esse favor, esse incondicional apoio constitui o melhor elemento de êxito... No caso presente, porém, o merecimento corresponde bem aos aplausos que o cercam; por isso, estes o não hão de prejudicar e de nenhum modo o poderão tornar suspeito. De maneira que o Teatro Nacional, que tão justificadamente podia confiar no valor do Sr. Eduardo Victorino, pode hoje, graças a ele, contar com a dedicação de todos os que, entendendo a arte, sinceramente a estimam.
Falta apenas que os poderes públicos o tomem a sério, ao pobre Teatro Nacional. Por enquanto, francamente, não parecem nada dispostos a isso. Quando a gente espera que eles vão, enfim, tomar uma medida comprovativa do seu interesse pela arte dramática brasileira, o que resulta é a prova de que é a única arte para eles absolutamente indiferente. E os seus atos, neste assunto, chegam a afigurar-se de pura caçoada. Intencionalmente ou sem intenção – isto é, com as mais puras intenções – a prefeitura tem “debochado o caso”. No contrato Da Rosa, tão guerreado e amaldiçoado, havia a subvenção de cento e vinte contos, sendo: setenta para uma companhia lírica, trinta para uma companhia dramática estrangeira e vinte para a companhia nacional. Por essa distribuição de verbas se vê a noção que os poderes municipais da época tinham do assunto acerca do qual deliberavam. Para a ópera, que a sociedade carioca positivamente adora e pela qual vai até o sacrifício, setenta contos; para as companhias que, trazendo o seu repertório feito e dando uma peça por noite, sempre ganham dinheiro nesta cidade, trinta contos; para a companhia nacional, com todas as dificuldades e responsabilidades que a sua formação comportava, e ainda o contrapeso da Escola Dramática – vinte contos. Dir-se-ia que, se as verbas estavam distribuídas, a empresa concessionária as poderia aplicar doutra maneira e tudo no fim, daria certo... Perfeitamente; mas não fica, por isso, menos evidente a falta de compreensão, por parte da Prefeitura, se não o seu propósito de demonstrar pela questão de que principalmente devia cuidar, a maior indiferença ou o maior desprezo!
Quanto ao Sr. Eduardo Victorino, esse, desde o princípio, declarou que não queria saber de Lírico, nem de qualquer outro gênero estrangeiro. Estava disposto a trabalhar, a empregar os esforços e o tempo que fossem necessários, mas exclusivamente pelo Teatro Nacional. Deu-se-lhe a subvenção de setenta contos e... fizeram-se-lhe as melhores promessas. Em diversas “entrevistas”, o Sr. Eduardo Victorino manifestou, honesta e lealmente, como as condições em que ia iniciar o seu empreendimento lhe não sorriam se não como uma esperança em melhor e mais garantido futuro. Esta primeira temporada não lhe podia deixar lucro material nem favorecer grandemente a execução dos seus projetos. Havia mil obstáculos a vencer, a começar pela constituição da companhia, pois que se não poderiam contratar artistas capazes, para dois meses de espetáculos; depois as despesas do teatro, esse Teatro Municipal, cujo funcionamento, apesar de, no caso, parecer gratuito, se torna pavorosamente caro – só os porteiros custam mais de cem mil réis por dia; depois ainda, as demonstrações que o grosso público tem dado de não querer encaminhar-se para aquela monumental e faustosa casa de espetáculos, cujos frequentadores, sociedade de escol, não dão mais de uma boa receita a cada peça... Quanta responsabilidade, quanta dificuldade... Enfim, o futuro recompensaria tudo.
E foi nestas disposições – conforme as depreendemos das citadas reportagens – que o Sr. Eduardo Victorino deitou mãos à obra. E o entusiasmo e a superior orientação dos seus esforços indubitavelmente se patentearam no espetáculo da estreia. Era aquele o melhor conjunto de artistas que se conseguiria hoje organizar e via-se que todos davam o máximo que podiam dar; nunca se tinha visto aqui, em companhia do gênero, nacional ou estrangeira, tal apuro e tal propriedade de cenários, mobílias, acessórios; e – oh, maravilha! oh milagre! – não se ouvia o ponto e nenhum ator apelava para ele, estalando aflitivamente os dedos ou sapateando furiosamente, aos seus ouvidos... de mercador! Queriam mais auspiciosa estreia? mais brilhante promessa? maiores direitos à proteção generosa dos poderes competentes?
Pois bem: justamente, na véspera de se manifestarem esses soberbos resultados, a Prefeitura lavrava com uma empresa estrangeira um contrato de aluguel do Municipal, por três anos, de abril a outubro e, ainda, pelos modos, deixando, nos outros meses, o teatro sujeito aos preparativos daquela empresa! De maneira que, nestes primeiros três anos, a companhia brasileira só poderá funcionar em pleno verão e isso mesmo, dependerá... O ator João Barbosa lavrou, pela Gazeta, um protesto veemente, no qual chega a perguntar como pode a Prefeitura dar a subvenção de setenta contos para o início da fundação da arte dramática brasileira, a qual, logo depois, mostra não ligar importância alguma. Realmente, o caso não tem explicação, ou tem apenas esta: é brincadeira. Não sabemos que graça aos poderes municipais acharão a tal brincadeira; mas talvez eles também não saibam. O fato é que acham alguma, seja qual for; e então continuam.
Simplesmente, a Prefeitura há de acabar, um dia, por se enfadar, ela própria, de tal divertimento. As melhores pilheiras cansam; e forçoso se tornará, com maior ou menor subvenção, no Municipal ou fora dele, tratar a sério da questão do teatro brasileiro, em que há tantos se fala e pela qual tanta gente boa sinceramente se interessa. Não há razão alguma para que o Teatro não goze dos favores dispensados às outras artes. As chamadas Belas Artes tem um palácio magnífico, caprichosa organização de ensino, prêmios aos melhores alunos, toda a sorte de prestígios e regalias animadoras. Uma só circunstância justificaria o abandono de Teatro: a falta, se fosse possível prová-la, de elementos capazes de o honrar e engrandecer. Mas, se alguma coisa se evidencia, é o contrário disso. O público que, na terça-feira enchia o Municipal e que se compunha, naturalmente, das classes eminentes da sociedade, esse público fino, ilustrado, superiormente educado, aplaudia a peça e os artistas, com verdadeiro entusiasmo; e pondo-se de pé, quando a autora apareceu em cena, esse público julgou o talento de D. Julia Lopes de Almeida, manifestando-lhe, da maneira mais solene e respeitosa, a sua admiração. Se a peça não tivesse outras qualidades de técnica: a necessária lógica das situações, o hábil preparo das cenas em que se joga, - a excepcional intensidade dramática de certos episódios – a perfeição dos diálogos lhe bastaria para a tornar um trabalho teatral digno de altíssimos louvores. A personagem principal, essa mãe que se sacrifica até a última e tem o sagrado orgulho do seu sacrifício; que aconselha, vigia, defende e a cada passo mais se dedica; que não perdoa o mal feito a sua filha e finalmente mata quem a matou – esse tipo de mãe, como ali se nos apresenta, é de uma grandeza, de uma nobreza extraordinárias. E assim o público o compreendeu e assim o consagrou.
Ora, com peças destas e representadas como já o estão sendo pela companhia do Municipal – que só poderá melhorar à medida que se for afirmando a perfeita conjugação e harmonia dos seus elementos – quem duvidará do futuro do teatro brasileiro? e quem não desejará que por ele se faça tanto quanto possível e o mais cedo possível? Esta é a razão. Eis porque o teatro vingará. E desse resultado só continuam, hoje em dia, a duvidar aqueles que, de teimosia cética superior à de S. Tomé, nem depois de ver, acredita!
Por que aquilo que o Sr. Eduardo Victorino nos mostrou, com a representação de terça-feira, constitui já, inquestionavelmente, uma bela realidade.

JOÃO LUSO


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