domingo, 6 de outubro de 2013

"A QUÉM E ALÉM MAR"

JORNAL BRAZIL – 6/10/1912

O Teatro – a sua nacionalização em Portugal e no Brasil
Não merece senão aplausos a tentativa do Sr. Eduardo Victorino. Será ela coroada do êxito merecido pelo seu esforço e pela sua competência?
Em Portugal vem de velha data a preocupação de alguns escritores dramáticos em nacionalizar o teatro. Essas tentativas têm vindo à revoada como se como se andorinhas e como elas levantam vôo daí a pouco, e desaparecem.
Eu encheria estas colunas só com a relação de dramaturgos que desde Gil Vicente se têm dedicado a essa difícil tarefa absorvente. Poria à frente de todos eles Garrett, que foi o que pela evocação da História portuguesa mais e melhores elementos forneceu à patriótica campanha de nacionalização do teatro.
É preciso, porém, que nos entendamos e comecemos por aquilo de que todos os nacionalisadores se têm esquecido. Nacionalizar é a palavra vulgar e banal, e contudo, não me lembro de que para a hipótese de teatro ela tivesse sido definida, nem em Portugal nem aqui.
Nacionalizar não é apenas pôr em foco os escritores teatrais. Quantos há que seria de bom critério e de bom patriotismo conservar bem guardados nos arquivos e arredar para todo o sempre do palco cênico! Não é também, exibir perante uma nova geração uma peça nacional só porque a aplaudiu e consagrou uma geração extinta.
Nacionalizar é, primeiro do que tudo, selecionar. É fazer uma escolha tão rigorosa de peças e autores, que nada tenha a censurar a crítica mais exigente. Antigo ou moderno que importa, que importam os processos, as fórmulas de arte, o estilo, o modo de ser, a variedade de personagens, o assunto, a ação, se o objetivo é um só, se o fim não é senão este: fazer teatro nacional! Que importa que o escritor vá buscar a História ou à Vida do seu tempo, à sociedade de que ele faz parte ou àquela a que seus avós pertenceram, o “leit-motif”, o sangue e o nervo da sua criação, a mola real da sua obra, o carvão que ele deita na máquina do seu cérebro para se transformar em luz, a cujos raios se aqueçam e alumiam quantos dela se aproximem, quantos por ela sejam guiados!
Nacionalizar é pôr no palco de um teatro, ante os olhares de um público ávido de emoções, a Vida como ela é, a Sociedade como, na nossa terra, vive ou viveu. É reproduzir em fórmulas de arte, as tradições estéticas da raça, as vibrações do sentimento popular, a altivez ou a decadência da nobreza, as aspirações da burguesia, a alta vida dos salões e a vida arrastada dos miseráveis, a cidade e o campo, as cenas trágicas e as cenas simples, o fidalgo e o artista, o homem da cidade e o homem da aldeia. Nacionalizar, enfim, é apresentar a pátria através da arte. É por ao serviço de uma propaganda deveras patriótica, tudo o que de mais sutil e delicado tenha a psicologia, tudo o que de mais minucioso e cuidado a observação apurou, tudo o que o talento produziu de mais sólido, tudo o que de mais intenso a alma nacional, tudo o que de mais sugestivo exista na tradição e nos usos populares e tudo isto tão sintetizado e concreto nas mais puras fórmulas de arte, que de tudo ressalte a Vida, que no cenário, próprio e sugestivo do palco, se movam e agitem não figuras de teatro, mas figuras da humanidade, e que entre o autor e o público se estabeleça uma tão emotiva corrente de simpatia, com traços de verdade a fundi-los na mesma vibração, a identificá-los no mesmo sentimento, no mesmo amor, no mesmo júbilo, no mesmo ódio, na mesma ironia ou na mesma paixão, que só minutos depois, cerradas as portas do teatro, os espectadores de há pouco se lembrem cá fora, ao ar livre, que tudo aquilo foi uma representação, que foi tudo aquilo o sonho de um momento.
Mas na alma ingênua e até no espírito culto, nos corações simples e até nos que o não são, se essa obra de teatro era bem nacional, lá deixou um vestígio, lá imprimiu um traço, lá cravou a poderosa “griffe”, e essa impressão de momento é tão viva, cava tão fundo, que basta para depurar um sentimento, para avivar uma afeição, para tornar mais intensa uma alegria ou mais amarga uma saudade, para, da Vida que observamos, colhermos frutos e lições para a Vida que vivemos, para finalmente, conhecermos melhor a humanidade e amarmos mais a nossa terra.
                                                              
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De Garrett até aos nossos dias quanto em Portugal tentaram essa obra de regeneração pelo teatro!
Nacionalisando Molière, não teve outro intuito o grande poeta cego Antonio Feliciano de Castilho, que não fosse a de prestar esse valioso serviço ao teatro português, fazendo, pela riqueza e propriedade do vocabulário, pela adaptação das cenas ao meio português, e até pela intervenção de personagens portugueses, através da obra francesa, uma obra nacional!
Camillo Castello Branco, que sendo o maior prosador do século XIX não era propriamente um escritor de teatro, deixou, contudo, duas obras de verdadeira nacionalização, o drama “Espinhos e Flores” e a comédia “O Morgado de Fafe”. O antigo morgado do Minho com a sua ignorância salvar, com a sua prosápia ridícula, as suas imortais silabadas, com os seus trajos berrantes e os seus gestos de alarve, vive nessa figura que o escritor copiou, com mão de mestre, do natural, como os costumes pitorescos da linda província minhota se reproduzem fielmente na comédia de Camillo, portuguesa de lei.
Outra coisa não fez Joaquim da Costa Cascais, um dos mais fecundos escritores do último século, senão tentar numa obra vastíssima a nacionalização do teatro português. “O Alcaide de Faro”, a “Lei do Morgados”, “O Mineiro de Cascais” e a “Caridade”, terão sempre um lugar de destaque entre as obras nacionais, não só porque caracterizam uma época, mas sobretudo por que são preciosos documentos de observação, crítica às leis sociais através do teatro e reprodução exata dos costumes tradicionais do povo português.
Não falo de Mendes Leal, nem de Ricardo Cordeiro, nem de Fernando Caldeira, nem de Cesar de Lacerda, nem de Gervásio Lobato, nem de muitos outros que carrearam cimento e pedra para o edifício da nacionalização, porque só quero fixar aqui os nomes dos que tiveram esse fim exclusivamente em vista, dos que não procuraram outra coisa que não fosse isto: fazer o teatro português bem português.
Depois deles veio um grupo forte, ousado, que meteu mãos à obra, e que enriqueceu com obras portuguesas o teatro nacional. Foram Lopes de Mendonça, que no “Duque de Vizeu”, laureado pela Academia registrou em vibrantes alexandrinos páginas dramáticas da história portuguesa, e que mais tarde renovou com brilho a opereta histórica, no “Tição Negro”.
Nesse ramo teatral, já o tinha precedido Lorjó Tavares, com a “Moura de Silves”, representada com largo êxito em Lisboa e no Rio de Janeiro. Este mesmo escritor teatral abordou, também com êxito, no “Segredo de Confissão”, outro gênero: o da singeleza dos costumes portugueses, das cenas íntimas entre pessoas simples, gênero de que D. João da Câmara deixou uma obra prima: “Os Velhos”.
Em outros trabalhos, bem portugueses também, de história, de costumes populares, da vida social do seu tempo, pode afirmar-se que este escritor saudoso criou uma obra de nacionalização. Tentativas, com o mesmo objetivo, uma ou outra cercada de excelentes resultados, fizeram-nas Julio Dantas e Eduardo Schwalback e depois destes surgiu uma nova camada de escritores teatrais, que todos os dias despejam peças sobre todos os teatros de Lisboa, sendo raras as de valor que, de entre tantas se aproveitam.
Outro processo de nacionalização, o último, foi o que ainda não há muito pôs em ação, em Portugal, e de que o Rio já viu, uma pálida amostra, um poeta português: Lopes Vieira. Foi uma obra de benemerência, em que ele empregou esforço e confiança, atividade e talento. Deixar ver, aplaudir, admirar e o que é mais, amar, o gênio literário do fundador do teatro português; exibir aos nossos olhos e aos nossos ouvidos um Gil Vicente inteligível, e quanto possível fosse, conveniente, sem perder nunca a sua nativa espontaneidade e o seu poder inigualável de observação, e a sua audácia e a sua ironia, e a sua mordacidade, e a sua crítica de costumes do tempo, através do teatro ingênuo, na presença do Rei e da Corte; levar os menos letrados à percepção e ao sentimento da obra monumental de Gil Vicente, foi o mais alto e inteligente serviço prestado à nacionalização do teatro português.


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Se o Sr. Eduardo Victorino, professor dos mais cultos, tão versado em coisas de teatro, tão familiar com a arte dramática; conseguir o que deseja, atingir o fim para que trabalha com denodo: a nacionalização do teatro brasileiro, resolverá um problema mais difícil do que o é em Portugal.
Por quê?
Porque o Brasil não tem passado longo para possuir uma literatura clássica. Separada da portuguesa, a sua história, apesar de brilhante, tem poucos dias, porque, no decurso dos séculos e na vida de uma nacionalização do seu teatro, têm de contribuir em larga escala, não atores nacionais, mas atores portugueses.
O campo é, por conseguinte, menos vasto, e por isso mais difícil e arriscado. Trazer para o palco teatral todos os que tenham talento e vocação, e pelo êxito das obras representadas, dar, por assim dizer, ao público a faculdade da seleção, torná-lo juiz, e entre o que ele aplaudiu e consagrou escolher ainda o melhor, o que a crítica sancione, o que mais reproduza os feitos históricos da sociedade brasileira ou a vida dos nossos dias e com esse apuramento de obras teatrais e de autores dramáticos formar uma alta categoria intelectual, de onde mais tarde possa constituir-se um núcleo de clássicos do teatro brasileiro, esse é o principal fim que deve ter em vista quem se arrojou à nobre audácia de nacionalizar o teatro do Brasil. O início da campanha foi excelente e não podia ser mais acertado. Para sempre ficará cabendo ao Sr. Eduardo Victorino a glória de entrar a porta do Municipal, na empresa aventurosa a que vai consagrar-se, pela mão da mais alta representante da intelectualidade feminina do Brasil: D. Julia Lopes de Almeida.
Rio, 5 de Outubro

Jayme Victor


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