domingo, 5 de maio de 2013

Artigo de Bastos Tigre






















CORREIO – 5/10/1912
UM TEATRO NACIONAL
Começou a ser posto em execução o velho projeto de soerguimento do Teatro Nacional. Abriu-se a season ansiosamente esperada, precedida de retumbantes reclamos à yankee, com uma peça de intuitos sociais, finalmente escrita, dizem, e assinada por uma senhora, o que de per si já devia constituir um título de simpatia para a crítica a mais esmiuçadora e severa. Apesar desta circunstância, a impressão da crítica foi-lhe francamente desfavorável; houve quem atribuísse a culpa aos atores, que atiraram ao porão peça tão bem apadrinhada; houve quem desse aos cenários e ao guarda-roupa a responsabilidade da defaite; o ensaiador, o contra-regra, o ponto, tiveram todos o seu quinhão de bode expiatório no fracasso do drama de estreia; e houve até horribile dictu! quem atribuísse a culpa à própria peça!
Ora, ao nosso ver, ninguém é culpado; tal qual como no crime que há dias o democrático tribunal do júri acabou de julgar.
A peça caiu, falemos francamente, como cairão todas as que tentarem pôr nas tábuas do Teatro Municipal, com pretensões a tragédia e alta comédia, peças a tese, estudos psicológicos, etc.
Assim como o protecionismo na vida econômica do país criou as indústrias artificiais como a do fósforo, em que tudo é importado, desde o clorato de potássio até o rótulo, assim na vida literária, intelectual, a feitura de peças de tal ordem será sempre uma indústria de artifício e nunca uma criação de arte. Por ora, pelo menos. Como na indústria dos pregos ou dos fósforos, para não nos afastarmos do paralelo, vem tudo de fora na confecção dramatúrgica. Eis o processo porque o autor, íamos dizer-lo o industrial, fabrica o seu drama em cinco atos, com ou sem tese, destinado a demonstrar ao mundo que possuímos, além do nosso café e da nossa borracha, o nosso teatro, autenticamente brasileiro, nacional, indígena, como o sabiá e o Pão de Açúcar.
Ele, o autor, aproveitando o protecionismo que passou no Conselho, como na Câmara passaria um projeto em defesa do toucinho mineiro, encomenda de Paris uma certa dose de rafinement social, que a nossa terra não produz, alguns tipos que joguem espada, alguns pintores que façam vida boemia, grisettes que sirvam de modelo aos referidos pintores, cidadãos ricos que vivam dos rendimentos e dêem em seus palácios five ó clocks e recepções, toda essa matéria prima de que há absoluta falta em nossa incipiente semi-civilização; tudo isso recebe o autor, dos centros europeus convenientemente embalado em volumes encapados de amarelo, a 3 fr. 50, ou nos suplementos da Ilustraçãofrancesa.
(ilegível) assim dos (ilegível) e dos personagens ficam-lhe faltando apenas paixões que os agitem, movimentem, criando situações dramáticas, profundamente emotivas, fortes e intensas, que façam vibrar a sensibilidade do auditório e o tornem interessado no desfecho da ação, com a pontinha de moral ou de ceticismo no fim do último ato.
Novas encomendas para a Europa; e aí vem de importação o adultério escandaloso entre gente da alta linhagem, o fermento socialista, o problema religioso, os atritos de raças, os preconceitos de classe, em suma, todo esse manancial emotivo já, de resto, muito explorado pelos dramaturgos franceses, que vai agora servir para a fatura da nossa “peça nacional”.
E munido de todos os ingredientes, mete o escritor mãos à obra; como adubo indígena, entram apenas a gramática e o talento, quando o autor os tenha disponíveis.
Eis, afinal, completa a obra de arte que vai, municipalmente subsidiada, atestar aos coevos e aos posteros, que nos quoque gens humus em literatura teatral.
E a peça indígena sobe à cena, convenientemente ensaiada por um empresário português, e é representada por artistas tão lusitanos como o empresário ensaiador, e o saudoso Mondego.
É a isto que se chama o teatro nacional.
A peça caiu; era de prever. O público que lá foi, afrontando o luxo dos ônix e alabastros, esperava encontrar, reproduzida por atores brasileiros, a vida brasileira, com as suas paixões, as suas virtudes e vícios.
Não os temos nós perfeitamente caracterizados, típicos, nacionais? Deixemos, então, a mania do teatro nacional; pois se não possuímos uma vida nacional, como pretender reproduzir no palco essa coisa insistente?
Em vez do que esperava, o espectador vai de fato ouvir e ver uma salada de cenas apanhadas aqui e ali, em comédias, em dramas e tragédias, em romances franceses. Como na indústria do fósforo, tudo ali é matéria prima importada.
Que concluir dessas considerações pessimistas que vimos fazendo sobre o nosso tão sonhado teatro?
Apenas isto: não temos autores, não temos atores, não temos “motivos” – para drama, a alta comédia ou a tragédia nacional.
Por ora, ao posso ver, só um teatro é possível entre nós: o teatro alegre, com a opereta, a burleta, a revista. A revista, sim; podem corar à vontade os vestais da arte pura.
Só a revista e a burleta, expurgadas da pornografia de mau gosto, podem por ora caracterizar os nossos costumes, reproduzir a nossa semi-civilização, dando nome aos autores, dinheiro aos empresários e alegria ao público.
Enquanto os dramas psicológicos morrem na segunda representação, diante da plateia do Municipal, em paz e às moscas, o público irá enchendo os pequenos teatros, onde a vida nacional é tratada com o ridículo que lhe é devido, onde os tipos aparecem inconfundíveis na linha grotesca das caricaturas, para demorarem na memória de toda uma geração, fixados nela pela brejeira melodia dos couplets e dos refrains.
Quem porventura, esqueceu o
“Vidigal famoso
 Mais rancoroso do que um bicho mau”
E quem não vê o nosso muito nacional espécime do “homem todo família”, que prega moral e é familiar da roleta e das cocottes, naquele semvergonhismo Rodrigues da Capital Federal?
Eis aí, para não citar outros, dois tipos nacionais perfeitamente definidos e estudados.
Que obra dramática séria se pode orgulhar entre nós de haver dissecado um tipo do nosso meio, fixando-o assim, como o standartde um certo agrupamento ou de uma dada época nacional?
Mas poderão objetar, não somos nós, porventura, capazes das mesmas paixões humanas que em todo mundo fornecem o tema da obra teatral?
Por certo que sim; apenas – e sejam por isto os deuses louvados – a nossa índole não permite os quinto atos das tragédias; o plumitivo que se abalançasse a apanhar com a Kodak de sua observação um flagrante social, digamos, por exemplo, uma tragédia passional, e a dramatizasse profundamente, ibsenianamente, iria por fim cair, antes que o prêmio fosse outorgado à virtude, na hilariante, na impagável, na amaxixada cena cômica do júri.
Imaginem, o júri metido num fim de tragédia! Que achincalhamento para o teatro!
Não, meus senhores, deixemo-nos de dramas e de tragédias; aproveitem-se os talentos, as aptidões, que os temos de sobra, na edificação do nosso teatro, do teatro que responde às necessidades do meio e do momento.
Ponhamos a alma nacional em alegres e saltitantes revistas por sessões.
Bastos Tigre*

*Manuel Bastos Tigre (1882-1957) – Formou-se engenheiro civil, era pernambucano, porém veio para o Rio de Janeiro e tornou-se jornalista, humorista, poeta e teatrólogo. Escreveu dezenas de Revistas, entre elas a mais famosa Maxixe. Em parceria com Eduardo Victorino as Revistas Viva o amor! e Dito e feito.

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