quarta-feira, 22 de maio de 2013






GAZETA TEATRAL – 10/1912

ABERTURA DA TEMPORADA OFICIAL – No municipal representa-se “Quem não perdoa”, para estreia da companhia nacional.

- Que tal?
- Bem, muito bem.
- Ou passável, apenas decente...
- Não, muito bem mesmo. Sala repleta. Estavam lá o chefe do Estado, o ministro do Interior, o general prefeito, mundo oficial. As frisas e os camarotes, floridos; a plateia, com trajes custosos e peitilhos reluzentes. Houve chamados à cena. Palmas, muitas palmas. Uma noite de gala.
- E a peça, o desempenho?
Era mais de meia-noite. Na redação, assaltados pelas perguntas, principiamos a escrever estas linhas. Certo, uma das coisas que mais cooperarão para o ressurgimento do nosso teatro há de ser, sem dúvida, a sinceridade da crítica.
Se vamos para aí dizer que tudo está muito bom, que tudo é assim mesmo, que tudo foi perfeitamente bem, então não temos nada feito, o resultado será contraproducente.
Também não devemos ir ao ponto de arrumar em cima das peças e dos autores e atores uma crítica implacável, serrada, por demais severa: seria matar aspirações e esmorecer vontades.
Nem uma, nem outra coisa. Mas uma franca e leal apreciação, sem a mínima autoridade pretensiosa, encarando apenas as coisas conforme se as observou e se as sentiu.
É assim que pretendemos apreciar os originais brasileiros e a sua interpretação na presente temporada.
***
De teatro, da Sra. D. Julia Lopes de Almeida, um nome feito na nossa literatura, conhecíamos apenas a sua peça “A Herança”, um pequeno ato, que, aliás, nos deixara a mais viva impressão. Era, de resto, até o “Quem não perdoa”, a sua única produção no gênero.
Há, nesse único ato de que se compõe a peça, alguma coisa de forte, de perfeitamente natural, de humano enfim, que, serenamente repassado de uma branda emoção, nos chegara a empolgar, quando a vimos representada pela companhia da Exposição.
Por isso, aguçara-nos a curiosidade a nova peça da ilustre escritora.
- E então?
- Vejamos...
D. Elvira, uma viúva, que com sua filha habita uma casa de real conforto, vê-se na contingência dolorosa de ir vendendo os móveis para poder continuar a viver. Ilda, sua filha, que é boa, trabalha para ajudá-la.
Um dia, após a mãe ter negociado com o belchior Beirão a mobília e o piano, entra a filha um tanto alvoroçada, participando à mãe que tem alguma coisa a dizer-lhe. Uma sua amiga, que chega, participa-lhe, que conseguiu para Ilda mais duas alunas. D. Elvira, ao sair Sophia, conta à filha que já sabe o seu segredo e que não consente em tal. Já são demais as alunas que tem.
Mas... como a hora se aproxima, Ilda é então forçada a confessar, dizendo à sua mãe que dentro em poucos minutos um moço virá pedi-la em casamento. Admiração de D. Elvira. Ilda conhecera-o em casa de umas alunas suas. E amara-o.
O Dr. Gustavo Ribas, engenheiro de futuro numa casa de eletricidade e com herança, é recebido por D. Elvira, que lhe conta logo a vida toda e as dificuldades de seu lar, aconselhando-o a pensar bem, a refletir muito. Gustavo sai e Ilda que, naturalmente estava à espreita, entra e cai nos braços de sua mãe.
No segundo ato, em casa de Ilda, há doze anos casada com Gustavo, sua mãe consegue dela o juramento de que se ela chegar a amar outro homem, que não o seu marido, se sacrificará, mantendo pura a sua união com Gustavo. E conta que ela se havia também sacrificado. Vão chegando visitas – um casal tios do marido de Ilda; um amigo da casa, o Sr. Fausto; um empregado de Gustavo... Sabemos então que o marido de Ilda tem uma amante, a mulher do capitão Elias. As visitas saem, saem assim como a D. Elvira, que vai fazer umas compras, a pedido da filha e tomar chá, por ela, na Cavé.
Ao retirar-se Ilda para o interior, Fausto, que ficara, conta a Gustavo que lhe disseram estar o Sr. Ramires apaixonado pela sua mulher. Gustavo que é um impetuoso – todos o dizem – pensa logo que sua mulher tem um amante. fausto tranquiliza-o e fa-lo retirar-se com o fito de conseguir o meio de se mandar Ilda para uma fazenda, passar algum tempo, pois o Dr. Ramires vai como cônsul para a Europa.
Mal eles saem Ilda despacha os criados em serviços demorados. É a hora da entrevista, a primeira e a única. Ramires chega. declarações de amor. Ela já sabe que ele vai partir. mandou chamá-lo para a despedida.
No momento de trocarem o beijo, chega o marido. Desvairado mata a mulher. Corre em procura de Ramires, que saíra, por uma outra porta, porque a casa tem duas entradas. Nisso a mãe de Ilda chega da cidade. Entra despreocupadamente. A filha já estava morta.
No dia do júri de Gustavo – é o terceiro ato – os tios, em casa dele, preparam a recepção. Certo, virá alguém. Chegam umas vizinhas, alguns amigos e por fim, Gustavo com o advogado e íntimos. Há música, canto, discursos, champagne. Gustavo sente-se aborrecido. Os visitantes saem. E ele fica só. Nesse momento, chega a mãe de Ilda. Atira-lhe ao rosto todas as dores que sente e, como mãe, é “quem não perdoa”, mata-o... É só.
Ora, tudo isso pode bem ser que se dê, ou que se tenha mesmo dado. Apenas a maneira por que a ilustre escritora, cujo nome estrelejado somos os primeiros a respeitar, pôs todos esses fatos em cena, é que nos pareceu um tanto artificial, urdidos como estão, ao nosso ver, de um modo pouco espontâneo, pouco verossímil.
Achamos mais que a ação, aqui e ali, arrasta-se e não consegue manter ileso no espírito do espectador o fio emocional.
Tirando a cena com o belchior, que é natural, as de mãe e filha, antes e depois da visita de Sophia, que são ainda bem feitas, logo no primeiro ato sente-se como se quebrar todo o interesse que se apodera de nós pela ação, ao ver D. Elvira, recebendo em sua casa um homem que vem pedir a mão de sua filha, desenrolar o interminável rosário das suas contrariedades...
Certo, isso, além de um tanto inverossímil, numa primeira visita dessas, tratando-se como se trata de uma pessoa que tivera o conforto da alta roda, desvia a atenção do espectador, porque o diálogo é um tanto sem vida, quase que incolor mesmo. É que Gustavo quase não balbucia uma palavra, limitando-se a ouvir, apenas...
Depois, para nós, todo esse primeiro ato é uma série de cenas inteiramente inúteis para a ação da peça, digamos melhor, do drama.
É simples. Uma vez que o segundo ato começa 10 anos após, era o suficiente que nessa ocasião, em cenas em que se definissem os tipos principais da ação e a razão de ser de cada um, no ambiente onde iam viver, se deixasse transparecer o passado do casal, em que condições se haviam consorciado. Gustavo e Ilda – que é para quanto serve o primeiro ato.
Desse defeito, da pouca razão de ser do primeiro ato, decorre todo o desenrolar fictício do segundo, em que o artifício, o preparado das cenas principais revela-se, simultaneamente. Aí sentimos nós que cada entrada de um tipo novo em cena, era o atestado frisante do nosso modo de pensar.
Primeiro, a cena com os tios de Gustavo, que não deixa de dar uma certa vivacidade ao ato, não define bem o caráter desses personagens.
Assim, Fausto, que o espectador ainda não conhecia, entra naquele meio unicamente para dizer a Gustavo que a sua mulher é amada pelo Dr. Ramires. É evidentemente forçada aquela aparição assim de um tipo que não se conhecia, muito embora se diga amigo. Como é ainda forçada a vinda de Ramires, de quem apenas se falara.
A nós, ao menos nos pareceram forçadas; mas se não são forçadas, são ao menos preparadas, não há nelas uma espontaneidade, visivelmente decorrente da marcha dos fatos.
Quem poderia dizer que Fausto tinha direito àquilo que praticou, quem poderia supor que Ilda e Ramires mantinham relações naquele ponto. Bernstein faz, pode-se dizer o teatro dos imprevistos. Mas fa-lo com lógica, com consequências naturalmente explicáveis.
Convenhamos que, muito embora o teatro social seja o reflexo da vida, na urdidura da peça, e por esse reflexo mesmo jamais deve deixar de transparecer o estudo dos personagens. Não é só o desenrolar dos fatos, o chamado enredo, que deve preocupar o autor. Ao contrário, acima dele está o desenho dos tipos, para que nós cá fora possamos acreditar, mais ainda entrar na realidade da ação.
Depois, aquela morte final em cena, impossível de se dar como está na peça, a não ser que Ilda morra sem gritar, o que é muito raro para quem leva uma facada. Mas se Ilda gritar, D. Elvira não poderá entrar assim distraída como entra. Seria mais lógico e mais elegante que Ilda fugisse. Lá dentro então o marido detonaria o revolver e o pano caia.
No terceiro ato, não só não nos agrada a cena final, porque não podemos admitir que um indivíduo impetuoso ouça, depois de ter sido julgado inocente, todos os desabafos, um tanto fortes, da mãe de Ilda, que acaba matando-o, como ainda julgamos as outras cenas um tanto feitas para recheio do ato.
- E o desempenho?
- Os artistas da Companhia Nacional fizeram um esforço verdadeiramente brilhante. É uma verdade que se impõe. Todos os papéis estavam polidos, limpos e estudados. E isso é de notar, tanto mais que o espaço de tempo foi curto e eles se acham sobrecarregados com os papéis das outras peças.
Maria Falcão soube manter uma linha correta e nos dois momentos em que temíamos algum deslize na sua interpretação, ao encontrar a filha morta e ao matar o seu marido.
Pode-se dizer, sem exagero, que ela viveu o papel de D. Elvira.
Lucilia Peres, ao seu lado, esteve bem na Ilda: em todo o primeiro ato e no segundo, na cena com sua mãe e na cena da entrevista com o apaixonado, ela deu relevo ao seu papel, tendo entradas e saídas de efeito.
Jacintho foi feito com propriedade, por Ferreira de Souza, que é ainda e sempre o mesmo, correto, natural, sóbrio. Fez sua mulher Luiza de Oliveira, e com muito acerto, provocando risos, como era do papel...
O marido de Ilda, o Dr. Gustavo Ribas, esteve nas mãos de Antonio ramos, que se por vezes tem fogo demais, por outras é frio em excesso, como foi na cena do pedido de casamento. Contudo, não se comprometeu.
João Barbosa, numa ponta, o Sr. Fausto, manteve-se bem.
Ramires, o galã, a cargo de Alvaro Costa, pareceu-nos um pouco contrafeito. No entanto, o Sr. Alvaro Costa é elegante, tem uma boa voz e é capaz dar brilho a papel mais definido. Ontem sentimos isso.
Dois papéis que nos parecem os mais bem apanhados da peça, o belchior Beirão e o empregado de cartório, o Sr. Cardoso, foram com muita propriedade encarnados pelos atores Octavio Rangel e Carlos Abreu.
Cooperaram para o desenvolvimento da ação, nos demais papéis, os artistas Gabriella Montam, Corina Fróes, Fulvia Castello Branco, Desdemona Barros, Judith Saldanha, Brasilia Lazaro, Samuel Rosalvos, Affonso Mello e Castello Brando.
A “mise-en-scéne” é, sem dúvida, das mais brilhantes que temos tido. Pintou a sala elegante do primeiro ato, com o papel já desbotado, o cenógrafo Jayme Silva; o segundo, que é uma sala de um belo efeito, com o seu terraço ao fundo, dando para o jardim, Angelo Lazary
Achamo-la apenas alguma coisa baixa.
O terceiro ato é de Joaquim Santos.
O mobiliário e o guarda-roupa, respeitaram as exigências da peça.
Era bem.
Depois, foi uma noite de festa e de glória para o nome de Julia Lopes. No final do segundo ato, a ilustre escritora patrícia obteve uma calorosa ovação da assistência, em pé, que enchia o teatro todo. E o palco foi invadido por homens de letras, jornalistas, senhoras, que foram levar as felicitações à distinta escritora, merecedora, pelo seu passado de conquistas nas letras, de todas essas homenagens.
Abbadie

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