O Instituto Osmar Rodrigues
Cruz mantêm seus blogs com muita dificuldade. Tanto é assim que por motivos
técnicos junto ao Google, ficamos “fora do ar” durante todo esse tempo.
Essa parada forçada culminou
com o término da primeira montagem de Victorino no Brasil. Aqui e ali ainda
teremos artigos da primeira temporada, entretanto partiremos para a
continuidade da grande batalha desse diretor em prol do Teatro Brasileiro. (ERC)
Acredito,
que ao leitor constante de nosso Blog, pareçam repetição as inúmeras críticas
de uma só peça da primeira década do século XX. Porém, em cada uma encontramos
algo que acrescente, que surpreenda o texto já por nós conhecido, mesmo que não
lido! Espero que assim encarem nosso esforço e nossa alegria em poder
compartilhar tais preciosidades. (ERC)
COMMERCIO – s/d
TEATROS
E MÚSICA
O
TEATRO NACIONAL – Registremos a data auspiciosa de 1 de Outubro 1912 como o
início do Teatro Nacional.
O
ato da Prefeitura promovendo a concessão de uma subvenção, embora módica para a
companhia nacional, e confiando ao Sr. Eduardo Victorino a organização dessa
companhia merece francos louvores.
O
Teatro Municipal tinha ontem o aspecto dos dias festivos e o sentimento que
levou até lá a nossa melhor sociedade era muito outro que o snobismo.
A
concorrência esteve brilhantíssima e S. Ex. o Sr. Presidente da República,
acompanhado de sua Casa Militar, honrou essa récita inaugural com a sua
presença. Começou o espetáculo às nove horas em ponto, representando-se a peça
em três atos Quem não perdoa,
original de D. Julia Lopes de Almeida.
1º ato. Ao levantar-se o pano vê-se uma
sala pobremente mobiliada; nas paredes alguns quadros e manchas, no papel,
denunciando o lugar de outros que já haviam sido retirados, talvez para serem
vendidos, como nos faz supor o diálogo de um velho negociante de móveis usados,
com seu sobrinho e caixeiro, numa cena de justa observação que obedece ao velho
preceito da exposição preliminar, para dar ao espectador conhecimento dos
acontecimentos que determinaram a situação em que se encontram no momento as
principais personagens que vão viver em cena. Com efeito aparece a viúva D.
Elvira e vende por uma bagatela o piano, seu companheiro de tempos mais
felizes. Era preciso pagar aos fornecedores e o trabalho, dia e noite, não dava
o suficiente para viver! Saíra o ignóbil (ilegível) e D. Elvira, como para
despedir-se do velho amigo e companheiro preludia uma frase de Chopin, mas os
soluços sacodem-lhe o corpo que cai sobre o teclado. Entra Ilda, sua filha
única, tanto (ilegível) adorada porque sua mãe a disputara à morte, por vezes,
com um heroísmo de alma forte. Ilda percebe-lhe as lágrimas, enxuga-as e
faz-lhe as suas confidências. Chegara o momento em que era preciso romper o
silêncio que guardava há meses, por timidez; numa ingênua confusão conta que em
casa de umas alunas, belas e ricas, encontrara Gustavo, Engenheiro, bem
encarreirado na vida, que ela amava e de quem era amado. Ele deveria vir dentro
de poucos instantes pedi-la em casamento. Gustavo chega, com efeito encontra só
D. Elvira, e expõe-lhe as suas aspirações. D. Elvira responde-lhe com a nobreza
de sentimentos de uma mãe que acima de tudo coloca a felicidade de sua filha;
conta-lhe com uma lealdade mesclada a sua vida de pobreza, de sacrifícios, de trabalhos,
quase que de miséria, mas faz sentir que tudo sofria pela felicidade da filha e
que os seus olhos vigiariam a vida inteira, essa felicidade, como dois cães de
fila. Que Gustavo aguardasse alguns dias a sua resposta... refletisse...
esperasse...
Gustavo
retira-se, Ilda aparece. Mãe e filha enlaçam num abraço as suas almas, os seus
corações. Cai o pano.
2º ato. São passados doze anos, estamos em
casa de Gustavo. O luxo, o conforto, a representação, indicam a prosperidade do
engenheiro. D. Elvira cuida das flores. Entra Ilda e pede-lhe que se encarregue
de diversas comissões suas na cidade – no dentista, no joalheiro, na modista,
na Cavé, etc. D. Elvira procura ralhar docemente com a filha, estranhando-lhe a
mudança de caráter, a frequência das enxaquecas, a demasiada preocupação com o
seu corpo, a extrema faceirice. Naqueles ternos reparos percebe-se uma leve
intenção repreensiva; Ilda tenta justificar-se, mas sua mãe, sem denunciar a
mais leve suspeita contra sua filha, como a colocar-lhe diante dos olhos um
espelho da alma, conta-lhe pela primeira vez o seu grande segredo. Esquecida
pelo marido que a deixara em abandono, quando nasceu Ilda, um ano depois de
casada, ela teve um grande, um imenso amor por um homem que parecia também amá-la
com violenta paixão, mas resistiu a esse sentimento escudando-lhe no amor de
sua filha, para quem vivia exclusivamente. Nunca disse, nem ouviu uma frase de
amor desse homem, de cujas mãos guardava ainda a impressão deliciosa do
contato. Ele partiu e nunca mais ela o viu, nem dele soube...
A
confidência podia ser verdadeira, mas podia igualmente ser um recurso para
falar ao coração e a alma da filha que, durante toda narrativa manifestara na
fisionomia espanto como se lhe houvesse adivinhado o segredo. As palavras de D.
Elvira revolucionaram o espírito de Ilda, que parecia aterrada, como se sua mãe
lhe lesse dentro do coração. Ela consegue que D. Elvira saia para as suas incumbências
e afasta habilmente todos os criados. Momentos antes um amigo viera procurar
Gustavo e lhe revelara que já murmuravam lá fora dos amores de Ilda e de Manoel
Ramires. Violento, impulsivo, arrebatado, Gustavo, que pouco antes falava
alegremente dos seus amores libertinos, exalta-se em ímpetos de ciúme, mas o
amigo consegue levá-lo consigo.
Ilda
está absolutamente só em casa; nesse momento chega Ramires que ela mandara
chamar por carta. Recebe-o profundamente comovida, falando-lhe da sua imensa
paixão; ele, abalado, também comovido, censura-lhe a imprudência daquele
encontro; era preciso que se separassem, ele ia partir dentro de poucos dias.
No desespero dessa separação, quando se despediam, pela primeira vez se enlaçam
num beijo, que Gustavo vê, pois chegara cautelosamente como para surpreender
sua esposa. Ao passo que Ramires sai, Gustavo entra precipitadamente, crava um
punhal no seio da esposa, que rola morta num divã como se estivesse adormecida,
e sai como a perseguir Ramires.
Passam-se
dois segundos apenas e D. Elvira entra pela porta do jardim, em passos lentos,
calmamente. Acredita que a filha está adormecida e quando vem pé ante pé como a
desperta-la com um beijo, vê o punhal e recua aterrorizada. Da garganta
escapam-lhe sons roucos de horror e desespero. Cai o pano.
3º ato. Muitos amigos, em casa de Gustavo
esperam-no do júri, onde acabava de ser absolvido. Todos o felicitam, com
entusiasmo, o glorificam, como a um herói. Afinal ele fica só pela primeira vez
em sua casa e como se lhe remordesse a consciência, está inquieto, agitado e a
excitação aumenta até o desespero e ele arremessa-se sobre o divã. Quando ergue
os olhos vê uma figura tétrica a encará-lo. Era D. Elvira trajando rigoroso
luto, encanecida, faces cavadas, olhos fundos, sombrios; ele ouve-lhe a voz
cavernosa a exprobar-lhe o crime nefando, a lembrar-lhe a frase do seu primeiro
colóquio quando ela disse que, vigiaria a felicidade de sua filha como um cão
de fila. Gustavo ergue-se como para po-la fora e ela enterra-lhe um punhal no
peito e da janela grita para a rua que acabava de matar o homem que lhe
assassinara a filha. Cai o pano.
Por
muito pálido e talvez desconexo, este resumo não pôde dar ideia da peça, que
compreende muitas personagens, quando apenas falamos de três, porque nelas
reside o interesse dramático propriamente. Entretanto, fazendo por essa forma a
exposição, foi nosso intuito mostrar desde logo que se não trata propriamente
de uma ação dramática acompanhando as paixões, os sentimentos e o caráter das
personagens no seu dinamismo psicológico. A peça consta principalmente de três
quadros: nos dois últimos a ação já caminhava à revelia do espectador, para
chegar à crise. É a essa crise que o espectador assiste, e ela atua-lhe sobre
os nervos com o fato material, com o lance violento. A intriga, propriamente,
sistema nervoso do organismo dramático, não existe na peça e a sua ausência de
psicologia. Desejaríamos que o próprio desenvolvimento da ação trouxesse a
explicação de certos fenômenos nas frases, nos diálogos, nos gestos, em todas
as manifestações da índole, do temperamento e do caráter e estávamos
convencidos de que seria assim ao vermos a cena em que Gustavo pede Ilda em
casamento; dessa cena deveria decorrer naturalmente a ação, justificando-se na
lógica impecável da psicologia, mas assim não foi, e só presenciamos fatos até
a conclusão, com prejuízo dos caracteres, da psicologia e da eterna humanidade.
Vamos
particularizar.
Já
dissemos que a peça começava com uma cena de justa observação, meticulosa e pormenorizada.
Logo depois travamos conhecimento com D. Elvira, belíssimo tipo de mãe,
encarnação sublime do amor e do sacrifício absoluto, figura digna do talento da
autora. Insinua-se igualmente na simpatia do espectador a figura de Ilda, a
formosa professora, jovem, pobre, profundamente honesta, que se não poupa ao
trabalho para auxiliar, com o seu modesto contingente, as despesas da casa. E
todo o primeiro ato decorre suavemente, com umas cenas de simplicidade, de
ligeira emoção, realçando-se, na resposta de D. Elvira a Gustavo, a ideia
elevada do amor de mãe. É um ato de fina comédia.
No
segundo ato, passados doze anos, D. Elvira conserva certa preeminência como
tipo bem estudado, mas as outras figuras (ilegível) do caráter que
apresentavam. Gustavo, não se sabe porque, esqueceu a mulher e entregou-se a
conquistas amorosas com o alvoroço de um rapaz leviano – dizem as outras
personagens; nós o vemos apenas na transição brusca da futilidade e da
indiferença pela esposa para o mais violento ciúme que o transtorna, o arrebata
e o leva ao assassinato de Ilda dentro de poucos momentos. Nada, entretanto,
justifica na peça essas alterações do engenheiro.
Que
foi feita da modéstia de Ilda, filha dedicada, apaixonada pelo seu primeiro
namorado, com o caráter bem formado no infortúnio pelo trabalho, pelo exemplo
das virtudes de sua mãe? Encontramo-la no segundo ato garrida, faceira,
hipócrita, destituída de senso moral, surda à voz da consciência, quando sua
mãe lhe aconselha a honestidade e a virtude e obedecendo como escrava às
sugestões do instinto animal. Onde a explicação desse novo modo de ser da
esposa de Gustavo? Onde a intriga que nos permitisse acompanhar essa mulher na
trilha tortuosa por que enveredara? O espectador no segundo ato percebe que não
era a Ilda do primeiro a mesma mulher que se oferece cínica aos ardores de
Ramires, mas ignora como se transformara a figura que o emocionara antes.
Naturalmente, para reconhecer na apaixonada de Ramires a pobre e bela
professora do primeiro ato, ele quisera saber quanto ocorrera de tal sorte
grave, que modificasse fundamentalmente aquele caráter. Sem a intriga, ou
antes, sem o enredo, sem a combinação de circunstâncias e de incidentes que o (ilegível)
entrasse na psicologia de Ilda, como compreender?
No
segundo ato surge Fausto, dizendo-se amigo de Gustavo e denunciando-lhe os
boatos deprimentes da honestidade de Ilda. Porque não se preparou
convenientemente o aparecimento de uma figura que nas primeiras palavras assume
tamanha importância na ação? Porque o não apresentaram desde o primeiro ato,
com a intimidade que o autorizasse a semelhante atitude?
Há
sem dúvida belezas incontestáveis na peça de D. Julia. Sem falarmos da
linguagem que tem a necessária fluidez nos diálogos, e a forma castiça desse
escrito laureado; sem insistirmos nessa ideia alevantada e superiormente
personificada do amor materno, vigilante, cioso até a ferocidade e vingativo,
devemos mencionar aquela admirável antítese entre D. Elvira e Angela. Tanto
aquela se desenhava altiva e nobre quanto esta se exibia ridícula e fútil na
sua loquacidade inesgotável, na sua superficialidade mesquinha, na sua
volubilidade caricata. Das outras figuras, apenas duas revelaram certo caráter,
de modo a despertar interesse – a do Antenor, cativado por um gesto amável de
Ilda e de Sophia. Com que felicidade a autora numa frase de três palavras
apenas, deu-nos a psicologia inteira dessa rapariga! Sophia lê uns versos de
Camões e ao terminar diz como por demais: “Não é feio!” Quanta futilidade
revelou aquela rapariga nesse comentário indulgente!
Falemos
da representação dizendo que ela agradou, confirmando as esperanças de que do
modesto elenco do Sr. Eduardo Victorino pode nascer o teatro nacional.
Certo,
não diremos que foram irrepreensíveis, admiráveis, os artistas, há tão pouco
reunidos em conjunto, há por longo tempo desabituados de realizações
artísticas, mas fazemos justiça reconhecendo-lhes no esforço inteligente um
resultado superior ao que se deveria esperar num cometimento tão apressado.
O
êxito da representação dá a medida do valor, da competência e da atividade do
Sr. Eduardo Victorino, formando o ambiente e ensaiando a companhia.
As
Sras. Maria Falcão e Lucilia Peres criaram com fino tato as duas figuras
principais – D. Elvira, personificação admirável do amor de mãe, abnegado e
sublime; Ilda, a jovem e bela professora, filha extremosa e depois a vítima de
uma paixão louca, absorvente. Luiza de Oliveira foi de rara felicidade na
tagarelice de Angela, que fez rir por vezes o auditório. Em pequenos papéis
citemos Gabriela Montani, Corina Fróes, Fulvia Castelo Branco, Desdemona
Barros, Judith Saldanha e Brasilia Lazaro que no 3º ato cantou com faceirice um
mimoso trecho musical de A. Nepomuceno.
Dos
atores cumpre mencionar Ferreira de Souza, sempre digno de apreço nas suas
personagens, João Barbosa, muito correto no seu papel, Ramos num papel bem
acomodado ao seu temperamento – o do Engenheiro Gustavo Ribas, Alvaro Costa um
tanto frio na cena única de Manoel Ramires, Otavio Rangel, de muito caráter e
pitoresco no adelo Beirão, Samuel Rosalvo, Afonso, Melo e Castelo Branco.
Os
cenários muito bem pintados – talvez com demasiada fantasia o do segundo ato -;
este de Angelo Lazary, os outros de Jayme Silva e Joaquim Santos.
Quiséramos
falar ainda da impropriedade do título da peça, mas falta-nos tempo. Diremos
algo, de outra feita, modificando talvez algum conceito menos seguro a que a
precipitação de última hora tenha dado causa.
O
público acolheu a peça e os artistas com particular simpatia, aplaudindo a
autora e os seus interpretes e chamando-os à cena por vezes, no final dos atos.
No final do 2º ato, principalmente, o público festejou calorosamente D. Julia
Lopes de Almeida, os artistas e muitas vozes chamavam também o Sr. Eduardo
Victorino.
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