domingo, 28 de abril de 2013

A foto oficial


Acredito, que ao leitor constante de nosso Blog, pareçam repetição as inúmeras críticas de uma só peça da primeira década do século XX. Porém, em cada uma encontramos algo que acrescente, que surpreenda o texto já por nós conhecido, mesmo que não lido! Espero que assim encarem nosso esforço e nossa alegria em poder compartilhar tais preciosidades. (ERC)




Eduardo Victorino jovem




COMMERCIO – s/d

TEATROS E MÚSICA

O TEATRO NACIONAL – Registremos a data auspiciosa de 1 de Outubro 1912 como o início do Teatro Nacional.
O ato da Prefeitura promovendo a concessão de uma subvenção, embora módica para a companhia nacional, e confiando ao Sr. Eduardo Victorino a organização dessa companhia merece francos louvores.
O Teatro Municipal tinha ontem o aspecto dos dias festivos e o sentimento que levou até lá a nossa melhor sociedade era muito outro que o snobismo.
A concorrência esteve brilhantíssima e S. Ex. o Sr. Presidente da República, acompanhado de sua Casa Militar, honrou essa récita inaugural com a sua presença. Começou o espetáculo às nove horas em ponto, representando-se a peça em três atos Quem não perdoa, original de D. Julia Lopes de Almeida.

ato. Ao levantar-se o pano vê-se uma sala pobremente mobiliada; nas paredes alguns quadros e manchas, no papel, denunciando o lugar de outros que já haviam sido retirados, talvez para serem vendidos, como nos faz supor o diálogo de um velho negociante de móveis usados, com seu sobrinho e caixeiro, numa cena de justa observação que obedece ao velho preceito da exposição preliminar, para dar ao espectador conhecimento dos acontecimentos que determinaram a situação em que se encontram no momento as principais personagens que vão viver em cena. Com efeito aparece a viúva D. Elvira e vende por uma bagatela o piano, seu companheiro de tempos mais felizes. Era preciso pagar aos fornecedores e o trabalho, dia e noite, não dava o suficiente para viver! Saíra o ignóbil (ilegível) e D. Elvira, como para despedir-se do velho amigo e companheiro preludia uma frase de Chopin, mas os soluços sacodem-lhe o corpo que cai sobre o teclado. Entra Ilda, sua filha única, tanto (ilegível) adorada porque sua mãe a disputara à morte, por vezes, com um heroísmo de alma forte. Ilda percebe-lhe as lágrimas, enxuga-as e faz-lhe as suas confidências. Chegara o momento em que era preciso romper o silêncio que guardava há meses, por timidez; numa ingênua confusão conta que em casa de umas alunas, belas e ricas, encontrara Gustavo, Engenheiro, bem encarreirado na vida, que ela amava e de quem era amado. Ele deveria vir dentro de poucos instantes pedi-la em casamento. Gustavo chega, com efeito encontra só D. Elvira, e expõe-lhe as suas aspirações. D. Elvira responde-lhe com a nobreza de sentimentos de uma mãe que acima de tudo coloca a felicidade de sua filha; conta-lhe com uma lealdade mesclada a sua vida de pobreza, de sacrifícios, de trabalhos, quase que de miséria, mas faz sentir que tudo sofria pela felicidade da filha e que os seus olhos vigiariam a vida inteira, essa felicidade, como dois cães de fila. Que Gustavo aguardasse alguns dias a sua resposta... refletisse... esperasse...
Gustavo retira-se, Ilda aparece. Mãe e filha enlaçam num abraço as suas almas, os seus corações. Cai o pano.

ato. São passados doze anos, estamos em casa de Gustavo. O luxo, o conforto, a representação, indicam a prosperidade do engenheiro. D. Elvira cuida das flores. Entra Ilda e pede-lhe que se encarregue de diversas comissões suas na cidade – no dentista, no joalheiro, na modista, na Cavé, etc. D. Elvira procura ralhar docemente com a filha, estranhando-lhe a mudança de caráter, a frequência das enxaquecas, a demasiada preocupação com o seu corpo, a extrema faceirice. Naqueles ternos reparos percebe-se uma leve intenção repreensiva; Ilda tenta justificar-se, mas sua mãe, sem denunciar a mais leve suspeita contra sua filha, como a colocar-lhe diante dos olhos um espelho da alma, conta-lhe pela primeira vez o seu grande segredo. Esquecida pelo marido que a deixara em abandono, quando nasceu Ilda, um ano depois de casada, ela teve um grande, um imenso amor por um homem que parecia também amá-la com violenta paixão, mas resistiu a esse sentimento escudando-lhe no amor de sua filha, para quem vivia exclusivamente. Nunca disse, nem ouviu uma frase de amor desse homem, de cujas mãos guardava ainda a impressão deliciosa do contato. Ele partiu e nunca mais ela o viu, nem dele soube...
A confidência podia ser verdadeira, mas podia igualmente ser um recurso para falar ao coração e a alma da filha que, durante toda narrativa manifestara na fisionomia espanto como se lhe houvesse adivinhado o segredo. As palavras de D. Elvira revolucionaram o espírito de Ilda, que parecia aterrada, como se sua mãe lhe lesse dentro do coração. Ela consegue que D. Elvira saia para as suas incumbências e afasta habilmente todos os criados. Momentos antes um amigo viera procurar Gustavo e lhe revelara que já murmuravam lá fora dos amores de Ilda e de Manoel Ramires. Violento, impulsivo, arrebatado, Gustavo, que pouco antes falava alegremente dos seus amores libertinos, exalta-se em ímpetos de ciúme, mas o amigo consegue levá-lo consigo.
Ilda está absolutamente só em casa; nesse momento chega Ramires que ela mandara chamar por carta. Recebe-o profundamente comovida, falando-lhe da sua imensa paixão; ele, abalado, também comovido, censura-lhe a imprudência daquele encontro; era preciso que se separassem, ele ia partir dentro de poucos dias. No desespero dessa separação, quando se despediam, pela primeira vez se enlaçam num beijo, que Gustavo vê, pois chegara cautelosamente como para surpreender sua esposa. Ao passo que Ramires sai, Gustavo entra precipitadamente, crava um punhal no seio da esposa, que rola morta num divã como se estivesse adormecida, e sai como a perseguir Ramires.
Passam-se dois segundos apenas e D. Elvira entra pela porta do jardim, em passos lentos, calmamente. Acredita que a filha está adormecida e quando vem pé ante pé como a desperta-la com um beijo, vê o punhal e recua aterrorizada. Da garganta escapam-lhe sons roucos de horror e desespero. Cai o pano.

ato. Muitos amigos, em casa de Gustavo esperam-no do júri, onde acabava de ser absolvido. Todos o felicitam, com entusiasmo, o glorificam, como a um herói. Afinal ele fica só pela primeira vez em sua casa e como se lhe remordesse a consciência, está inquieto, agitado e a excitação aumenta até o desespero e ele arremessa-se sobre o divã. Quando ergue os olhos vê uma figura tétrica a encará-lo. Era D. Elvira trajando rigoroso luto, encanecida, faces cavadas, olhos fundos, sombrios; ele ouve-lhe a voz cavernosa a exprobar-lhe o crime nefando, a lembrar-lhe a frase do seu primeiro colóquio quando ela disse que, vigiaria a felicidade de sua filha como um cão de fila. Gustavo ergue-se como para po-la fora e ela enterra-lhe um punhal no peito e da janela grita para a rua que acabava de matar o homem que lhe assassinara a filha. Cai o pano.

Por muito pálido e talvez desconexo, este resumo não pôde dar ideia da peça, que compreende muitas personagens, quando apenas falamos de três, porque nelas reside o interesse dramático propriamente. Entretanto, fazendo por essa forma a exposição, foi nosso intuito mostrar desde logo que se não trata propriamente de uma ação dramática acompanhando as paixões, os sentimentos e o caráter das personagens no seu dinamismo psicológico. A peça consta principalmente de três quadros: nos dois últimos a ação já caminhava à revelia do espectador, para chegar à crise. É a essa crise que o espectador assiste, e ela atua-lhe sobre os nervos com o fato material, com o lance violento. A intriga, propriamente, sistema nervoso do organismo dramático, não existe na peça e a sua ausência de psicologia. Desejaríamos que o próprio desenvolvimento da ação trouxesse a explicação de certos fenômenos nas frases, nos diálogos, nos gestos, em todas as manifestações da índole, do temperamento e do caráter e estávamos convencidos de que seria assim ao vermos a cena em que Gustavo pede Ilda em casamento; dessa cena deveria decorrer naturalmente a ação, justificando-se na lógica impecável da psicologia, mas assim não foi, e só presenciamos fatos até a conclusão, com prejuízo dos caracteres, da psicologia e da eterna humanidade.

Vamos particularizar.
Já dissemos que a peça começava com uma cena de justa observação, meticulosa e pormenorizada. Logo depois travamos conhecimento com D. Elvira, belíssimo tipo de mãe, encarnação sublime do amor e do sacrifício absoluto, figura digna do talento da autora. Insinua-se igualmente na simpatia do espectador a figura de Ilda, a formosa professora, jovem, pobre, profundamente honesta, que se não poupa ao trabalho para auxiliar, com o seu modesto contingente, as despesas da casa. E todo o primeiro ato decorre suavemente, com umas cenas de simplicidade, de ligeira emoção, realçando-se, na resposta de D. Elvira a Gustavo, a ideia elevada do amor de mãe. É um ato de fina comédia.
No segundo ato, passados doze anos, D. Elvira conserva certa preeminência como tipo bem estudado, mas as outras figuras (ilegível) do caráter que apresentavam. Gustavo, não se sabe porque, esqueceu a mulher e entregou-se a conquistas amorosas com o alvoroço de um rapaz leviano – dizem as outras personagens; nós o vemos apenas na transição brusca da futilidade e da indiferença pela esposa para o mais violento ciúme que o transtorna, o arrebata e o leva ao assassinato de Ilda dentro de poucos momentos. Nada, entretanto, justifica na peça essas alterações do engenheiro.
Que foi feita da modéstia de Ilda, filha dedicada, apaixonada pelo seu primeiro namorado, com o caráter bem formado no infortúnio pelo trabalho, pelo exemplo das virtudes de sua mãe? Encontramo-la no segundo ato garrida, faceira, hipócrita, destituída de senso moral, surda à voz da consciência, quando sua mãe lhe aconselha a honestidade e a virtude e obedecendo como escrava às sugestões do instinto animal. Onde a explicação desse novo modo de ser da esposa de Gustavo? Onde a intriga que nos permitisse acompanhar essa mulher na trilha tortuosa por que enveredara? O espectador no segundo ato percebe que não era a Ilda do primeiro a mesma mulher que se oferece cínica aos ardores de Ramires, mas ignora como se transformara a figura que o emocionara antes. Naturalmente, para reconhecer na apaixonada de Ramires a pobre e bela professora do primeiro ato, ele quisera saber quanto ocorrera de tal sorte grave, que modificasse fundamentalmente aquele caráter. Sem a intriga, ou antes, sem o enredo, sem a combinação de circunstâncias e de incidentes que o (ilegível) entrasse na psicologia de Ilda, como compreender?
No segundo ato surge Fausto, dizendo-se amigo de Gustavo e denunciando-lhe os boatos deprimentes da honestidade de Ilda. Porque não se preparou convenientemente o aparecimento de uma figura que nas primeiras palavras assume tamanha importância na ação? Porque o não apresentaram desde o primeiro ato, com a intimidade que o autorizasse a semelhante atitude?
Há sem dúvida belezas incontestáveis na peça de D. Julia. Sem falarmos da linguagem que tem a necessária fluidez nos diálogos, e a forma castiça desse escrito laureado; sem insistirmos nessa ideia alevantada e superiormente personificada do amor materno, vigilante, cioso até a ferocidade e vingativo, devemos mencionar aquela admirável antítese entre D. Elvira e Angela. Tanto aquela se desenhava altiva e nobre quanto esta se exibia ridícula e fútil na sua loquacidade inesgotável, na sua superficialidade mesquinha, na sua volubilidade caricata. Das outras figuras, apenas duas revelaram certo caráter, de modo a despertar interesse – a do Antenor, cativado por um gesto amável de Ilda e de Sophia. Com que felicidade a autora numa frase de três palavras apenas, deu-nos a psicologia inteira dessa rapariga! Sophia lê uns versos de Camões e ao terminar diz como por demais: “Não é feio!” Quanta futilidade revelou aquela rapariga nesse comentário indulgente!
Falemos da representação dizendo que ela agradou, confirmando as esperanças de que do modesto elenco do Sr. Eduardo Victorino pode nascer o teatro nacional.
Certo, não diremos que foram irrepreensíveis, admiráveis, os artistas, há tão pouco reunidos em conjunto, há por longo tempo desabituados de realizações artísticas, mas fazemos justiça reconhecendo-lhes no esforço inteligente um resultado superior ao que se deveria esperar num cometimento tão apressado.
O êxito da representação dá a medida do valor, da competência e da atividade do Sr. Eduardo Victorino, formando o ambiente e ensaiando a companhia.
As Sras. Maria Falcão e Lucilia Peres criaram com fino tato as duas figuras principais – D. Elvira, personificação admirável do amor de mãe, abnegado e sublime; Ilda, a jovem e bela professora, filha extremosa e depois a vítima de uma paixão louca, absorvente. Luiza de Oliveira foi de rara felicidade na tagarelice de Angela, que fez rir por vezes o auditório. Em pequenos papéis citemos Gabriela Montani, Corina Fróes, Fulvia Castelo Branco, Desdemona Barros, Judith Saldanha e Brasilia Lazaro que no 3º ato cantou com faceirice um mimoso trecho musical de A. Nepomuceno.
Dos atores cumpre mencionar Ferreira de Souza, sempre digno de apreço nas suas personagens, João Barbosa, muito correto no seu papel, Ramos num papel bem acomodado ao seu temperamento – o do Engenheiro Gustavo Ribas, Alvaro Costa um tanto frio na cena única de Manoel Ramires, Otavio Rangel, de muito caráter e pitoresco no adelo Beirão, Samuel Rosalvo, Afonso, Melo e Castelo Branco.
Os cenários muito bem pintados – talvez com demasiada fantasia o do segundo ato -; este de Angelo Lazary, os outros de Jayme Silva e Joaquim Santos.
Quiséramos falar ainda da impropriedade do título da peça, mas falta-nos tempo. Diremos algo, de outra feita, modificando talvez algum conceito menos seguro a que a precipitação de última hora tenha dado causa.
O público acolheu a peça e os artistas com particular simpatia, aplaudindo a autora e os seus interpretes e chamando-os à cena por vezes, no final dos atos. No final do 2º ato, principalmente, o público festejou calorosamente D. Julia Lopes de Almeida, os artistas e muitas vozes chamavam também o Sr. Eduardo Victorino.


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A foto oficial


Acredito, que ao leitor constante de nosso Blog, pareçam repetição as inúmeras críticas de uma só peça da primeira década do século XX. Porém, em cada uma encontramos algo que acrescente, que surpreenda o texto já por nós conhecido, mesmo que não lido! Espero que assim encarem nosso esforço e nossa alegria em poder compartilhar tais preciosidades. (ERC)




Eduardo Victorino jovem




COMMERCIO – s/d

TEATROS E MÚSICA

O TEATRO NACIONAL – Registremos a data auspiciosa de 1 de Outubro 1912 como o início do Teatro Nacional.
O ato da Prefeitura promovendo a concessão de uma subvenção, embora módica para a companhia nacional, e confiando ao Sr. Eduardo Victorino a organização dessa companhia merece francos louvores.
O Teatro Municipal tinha ontem o aspecto dos dias festivos e o sentimento que levou até lá a nossa melhor sociedade era muito outro que o snobismo.
A concorrência esteve brilhantíssima e S. Ex. o Sr. Presidente da República, acompanhado de sua Casa Militar, honrou essa récita inaugural com a sua presença. Começou o espetáculo às nove horas em ponto, representando-se a peça em três atos Quem não perdoa, original de D. Julia Lopes de Almeida.

ato. Ao levantar-se o pano vê-se uma sala pobremente mobiliada; nas paredes alguns quadros e manchas, no papel, denunciando o lugar de outros que já haviam sido retirados, talvez para serem vendidos, como nos faz supor o diálogo de um velho negociante de móveis usados, com seu sobrinho e caixeiro, numa cena de justa observação que obedece ao velho preceito da exposição preliminar, para dar ao espectador conhecimento dos acontecimentos que determinaram a situação em que se encontram no momento as principais personagens que vão viver em cena. Com efeito aparece a viúva D. Elvira e vende por uma bagatela o piano, seu companheiro de tempos mais felizes. Era preciso pagar aos fornecedores e o trabalho, dia e noite, não dava o suficiente para viver! Saíra o ignóbil (ilegível) e D. Elvira, como para despedir-se do velho amigo e companheiro preludia uma frase de Chopin, mas os soluços sacodem-lhe o corpo que cai sobre o teclado. Entra Ilda, sua filha única, tanto (ilegível) adorada porque sua mãe a disputara à morte, por vezes, com um heroísmo de alma forte. Ilda percebe-lhe as lágrimas, enxuga-as e faz-lhe as suas confidências. Chegara o momento em que era preciso romper o silêncio que guardava há meses, por timidez; numa ingênua confusão conta que em casa de umas alunas, belas e ricas, encontrara Gustavo, Engenheiro, bem encarreirado na vida, que ela amava e de quem era amado. Ele deveria vir dentro de poucos instantes pedi-la em casamento. Gustavo chega, com efeito encontra só D. Elvira, e expõe-lhe as suas aspirações. D. Elvira responde-lhe com a nobreza de sentimentos de uma mãe que acima de tudo coloca a felicidade de sua filha; conta-lhe com uma lealdade mesclada a sua vida de pobreza, de sacrifícios, de trabalhos, quase que de miséria, mas faz sentir que tudo sofria pela felicidade da filha e que os seus olhos vigiariam a vida inteira, essa felicidade, como dois cães de fila. Que Gustavo aguardasse alguns dias a sua resposta... refletisse... esperasse...
Gustavo retira-se, Ilda aparece. Mãe e filha enlaçam num abraço as suas almas, os seus corações. Cai o pano.

ato. São passados doze anos, estamos em casa de Gustavo. O luxo, o conforto, a representação, indicam a prosperidade do engenheiro. D. Elvira cuida das flores. Entra Ilda e pede-lhe que se encarregue de diversas comissões suas na cidade – no dentista, no joalheiro, na modista, na Cavé, etc. D. Elvira procura ralhar docemente com a filha, estranhando-lhe a mudança de caráter, a frequência das enxaquecas, a demasiada preocupação com o seu corpo, a extrema faceirice. Naqueles ternos reparos percebe-se uma leve intenção repreensiva; Ilda tenta justificar-se, mas sua mãe, sem denunciar a mais leve suspeita contra sua filha, como a colocar-lhe diante dos olhos um espelho da alma, conta-lhe pela primeira vez o seu grande segredo. Esquecida pelo marido que a deixara em abandono, quando nasceu Ilda, um ano depois de casada, ela teve um grande, um imenso amor por um homem que parecia também amá-la com violenta paixão, mas resistiu a esse sentimento escudando-lhe no amor de sua filha, para quem vivia exclusivamente. Nunca disse, nem ouviu uma frase de amor desse homem, de cujas mãos guardava ainda a impressão deliciosa do contato. Ele partiu e nunca mais ela o viu, nem dele soube...
A confidência podia ser verdadeira, mas podia igualmente ser um recurso para falar ao coração e a alma da filha que, durante toda narrativa manifestara na fisionomia espanto como se lhe houvesse adivinhado o segredo. As palavras de D. Elvira revolucionaram o espírito de Ilda, que parecia aterrada, como se sua mãe lhe lesse dentro do coração. Ela consegue que D. Elvira saia para as suas incumbências e afasta habilmente todos os criados. Momentos antes um amigo viera procurar Gustavo e lhe revelara que já murmuravam lá fora dos amores de Ilda e de Manoel Ramires. Violento, impulsivo, arrebatado, Gustavo, que pouco antes falava alegremente dos seus amores libertinos, exalta-se em ímpetos de ciúme, mas o amigo consegue levá-lo consigo.
Ilda está absolutamente só em casa; nesse momento chega Ramires que ela mandara chamar por carta. Recebe-o profundamente comovida, falando-lhe da sua imensa paixão; ele, abalado, também comovido, censura-lhe a imprudência daquele encontro; era preciso que se separassem, ele ia partir dentro de poucos dias. No desespero dessa separação, quando se despediam, pela primeira vez se enlaçam num beijo, que Gustavo vê, pois chegara cautelosamente como para surpreender sua esposa. Ao passo que Ramires sai, Gustavo entra precipitadamente, crava um punhal no seio da esposa, que rola morta num divã como se estivesse adormecida, e sai como a perseguir Ramires.
Passam-se dois segundos apenas e D. Elvira entra pela porta do jardim, em passos lentos, calmamente. Acredita que a filha está adormecida e quando vem pé ante pé como a desperta-la com um beijo, vê o punhal e recua aterrorizada. Da garganta escapam-lhe sons roucos de horror e desespero. Cai o pano.

ato. Muitos amigos, em casa de Gustavo esperam-no do júri, onde acabava de ser absolvido. Todos o felicitam, com entusiasmo, o glorificam, como a um herói. Afinal ele fica só pela primeira vez em sua casa e como se lhe remordesse a consciência, está inquieto, agitado e a excitação aumenta até o desespero e ele arremessa-se sobre o divã. Quando ergue os olhos vê uma figura tétrica a encará-lo. Era D. Elvira trajando rigoroso luto, encanecida, faces cavadas, olhos fundos, sombrios; ele ouve-lhe a voz cavernosa a exprobar-lhe o crime nefando, a lembrar-lhe a frase do seu primeiro colóquio quando ela disse que, vigiaria a felicidade de sua filha como um cão de fila. Gustavo ergue-se como para po-la fora e ela enterra-lhe um punhal no peito e da janela grita para a rua que acabava de matar o homem que lhe assassinara a filha. Cai o pano.

Por muito pálido e talvez desconexo, este resumo não pôde dar ideia da peça, que compreende muitas personagens, quando apenas falamos de três, porque nelas reside o interesse dramático propriamente. Entretanto, fazendo por essa forma a exposição, foi nosso intuito mostrar desde logo que se não trata propriamente de uma ação dramática acompanhando as paixões, os sentimentos e o caráter das personagens no seu dinamismo psicológico. A peça consta principalmente de três quadros: nos dois últimos a ação já caminhava à revelia do espectador, para chegar à crise. É a essa crise que o espectador assiste, e ela atua-lhe sobre os nervos com o fato material, com o lance violento. A intriga, propriamente, sistema nervoso do organismo dramático, não existe na peça e a sua ausência de psicologia. Desejaríamos que o próprio desenvolvimento da ação trouxesse a explicação de certos fenômenos nas frases, nos diálogos, nos gestos, em todas as manifestações da índole, do temperamento e do caráter e estávamos convencidos de que seria assim ao vermos a cena em que Gustavo pede Ilda em casamento; dessa cena deveria decorrer naturalmente a ação, justificando-se na lógica impecável da psicologia, mas assim não foi, e só presenciamos fatos até a conclusão, com prejuízo dos caracteres, da psicologia e da eterna humanidade.

Vamos particularizar.
Já dissemos que a peça começava com uma cena de justa observação, meticulosa e pormenorizada. Logo depois travamos conhecimento com D. Elvira, belíssimo tipo de mãe, encarnação sublime do amor e do sacrifício absoluto, figura digna do talento da autora. Insinua-se igualmente na simpatia do espectador a figura de Ilda, a formosa professora, jovem, pobre, profundamente honesta, que se não poupa ao trabalho para auxiliar, com o seu modesto contingente, as despesas da casa. E todo o primeiro ato decorre suavemente, com umas cenas de simplicidade, de ligeira emoção, realçando-se, na resposta de D. Elvira a Gustavo, a ideia elevada do amor de mãe. É um ato de fina comédia.
No segundo ato, passados doze anos, D. Elvira conserva certa preeminência como tipo bem estudado, mas as outras figuras (ilegível) do caráter que apresentavam. Gustavo, não se sabe porque, esqueceu a mulher e entregou-se a conquistas amorosas com o alvoroço de um rapaz leviano – dizem as outras personagens; nós o vemos apenas na transição brusca da futilidade e da indiferença pela esposa para o mais violento ciúme que o transtorna, o arrebata e o leva ao assassinato de Ilda dentro de poucos momentos. Nada, entretanto, justifica na peça essas alterações do engenheiro.
Que foi feita da modéstia de Ilda, filha dedicada, apaixonada pelo seu primeiro namorado, com o caráter bem formado no infortúnio pelo trabalho, pelo exemplo das virtudes de sua mãe? Encontramo-la no segundo ato garrida, faceira, hipócrita, destituída de senso moral, surda à voz da consciência, quando sua mãe lhe aconselha a honestidade e a virtude e obedecendo como escrava às sugestões do instinto animal. Onde a explicação desse novo modo de ser da esposa de Gustavo? Onde a intriga que nos permitisse acompanhar essa mulher na trilha tortuosa por que enveredara? O espectador no segundo ato percebe que não era a Ilda do primeiro a mesma mulher que se oferece cínica aos ardores de Ramires, mas ignora como se transformara a figura que o emocionara antes. Naturalmente, para reconhecer na apaixonada de Ramires a pobre e bela professora do primeiro ato, ele quisera saber quanto ocorrera de tal sorte grave, que modificasse fundamentalmente aquele caráter. Sem a intriga, ou antes, sem o enredo, sem a combinação de circunstâncias e de incidentes que o (ilegível) entrasse na psicologia de Ilda, como compreender?
No segundo ato surge Fausto, dizendo-se amigo de Gustavo e denunciando-lhe os boatos deprimentes da honestidade de Ilda. Porque não se preparou convenientemente o aparecimento de uma figura que nas primeiras palavras assume tamanha importância na ação? Porque o não apresentaram desde o primeiro ato, com a intimidade que o autorizasse a semelhante atitude?
Há sem dúvida belezas incontestáveis na peça de D. Julia. Sem falarmos da linguagem que tem a necessária fluidez nos diálogos, e a forma castiça desse escrito laureado; sem insistirmos nessa ideia alevantada e superiormente personificada do amor materno, vigilante, cioso até a ferocidade e vingativo, devemos mencionar aquela admirável antítese entre D. Elvira e Angela. Tanto aquela se desenhava altiva e nobre quanto esta se exibia ridícula e fútil na sua loquacidade inesgotável, na sua superficialidade mesquinha, na sua volubilidade caricata. Das outras figuras, apenas duas revelaram certo caráter, de modo a despertar interesse – a do Antenor, cativado por um gesto amável de Ilda e de Sophia. Com que felicidade a autora numa frase de três palavras apenas, deu-nos a psicologia inteira dessa rapariga! Sophia lê uns versos de Camões e ao terminar diz como por demais: “Não é feio!” Quanta futilidade revelou aquela rapariga nesse comentário indulgente!
Falemos da representação dizendo que ela agradou, confirmando as esperanças de que do modesto elenco do Sr. Eduardo Victorino pode nascer o teatro nacional.
Certo, não diremos que foram irrepreensíveis, admiráveis, os artistas, há tão pouco reunidos em conjunto, há por longo tempo desabituados de realizações artísticas, mas fazemos justiça reconhecendo-lhes no esforço inteligente um resultado superior ao que se deveria esperar num cometimento tão apressado.
O êxito da representação dá a medida do valor, da competência e da atividade do Sr. Eduardo Victorino, formando o ambiente e ensaiando a companhia.
As Sras. Maria Falcão e Lucilia Peres criaram com fino tato as duas figuras principais – D. Elvira, personificação admirável do amor de mãe, abnegado e sublime; Ilda, a jovem e bela professora, filha extremosa e depois a vítima de uma paixão louca, absorvente. Luiza de Oliveira foi de rara felicidade na tagarelice de Angela, que fez rir por vezes o auditório. Em pequenos papéis citemos Gabriela Montani, Corina Fróes, Fulvia Castelo Branco, Desdemona Barros, Judith Saldanha e Brasilia Lazaro que no 3º ato cantou com faceirice um mimoso trecho musical de A. Nepomuceno.
Dos atores cumpre mencionar Ferreira de Souza, sempre digno de apreço nas suas personagens, João Barbosa, muito correto no seu papel, Ramos num papel bem acomodado ao seu temperamento – o do Engenheiro Gustavo Ribas, Alvaro Costa um tanto frio na cena única de Manoel Ramires, Otavio Rangel, de muito caráter e pitoresco no adelo Beirão, Samuel Rosalvo, Afonso, Melo e Castelo Branco.
Os cenários muito bem pintados – talvez com demasiada fantasia o do segundo ato -; este de Angelo Lazary, os outros de Jayme Silva e Joaquim Santos.
Quiséramos falar ainda da impropriedade do título da peça, mas falta-nos tempo. Diremos algo, de outra feita, modificando talvez algum conceito menos seguro a que a precipitação de última hora tenha dado causa.
O público acolheu a peça e os artistas com particular simpatia, aplaudindo a autora e os seus interpretes e chamando-os à cena por vezes, no final dos atos. No final do 2º ato, principalmente, o público festejou calorosamente D. Julia Lopes de Almeida, os artistas e muitas vozes chamavam também o Sr. Eduardo Victorino.


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domingo, 21 de abril de 2013

"Parabéns, pois, às Letras Nacionais"


BRAZIL – 02/10/1912

Municipal – Estreia a Companhia Dramática Nacional – Quem não perdoa, 3 atos de D. Julia Lopes de Almeida

Impressão Geral
Se dependesse apenas da noite de estreia, a vitória da tentativa de ressurgimento do teatro nacional de drama e comédia, poder-se-ia dizer que a batalha estava ganha.
Porque foi um triunfo completo a representação da peça de D. Julia Lopes de Almeida.
No correr do espetáculo aqui e ali, pequenas deficiências de desempenho, senões remediáveis, pareciam indicar que no balanço final houvesse razão para lembrar um que e outro defeito.
Tal se não deu, porém, porque as cenas fortes, as cenas boas, de excelente comédia ou de drama vigoroso, apagaram tais lembranças e no fim da noite a impressão geral foi de que há um punhado de artistas muito aproveitável no nosso meio, uma nova boa peça e um novo bom dramaturgo, no Teatro Brasileiro.
Parabéns, pois, às Letras Nacionais.

A sala
Enchente real, Real e linda.
O tout Rio, supremamente chic e elegante não quis mostrar desinteresse pelo Teatro Nacional e afluiu todo, no deslumbramento de lindíssimas toilettes femininas, na distinção severa de smockingsirrepreensíveis ou de fracks bem talhados.
Na tribuna presidencial, o Sr. Marechal Presidente, com a sua casa militar. Em frente o Sr. General Prefeito Municipal e sua Exma. esposa.
Pelas frizas e camarotes, pela plateia e balcões, nomes dos mais citados nas crônicas mundanas, senhoras das mais formosas, senhoritas das mais graciosas e homens de letras, de arte, da política, de imprensa, do comércio, da indústria, do alto funcionalismo, etc...etc.
Lá em cima então, no alto palanque d’onde irrompem as ovações vigorosas, o povo – uma multidão numerosa e atenta.
E, em baixo, em cima, por toda a parte uma expectativa simpática, uma confiança nos nomes dos que iam jogar a grande cartada: D. Julia Lopes de Almeida e Sr. Eduardo Victorino.
Ao final do 2º ato, os aplausos que haviam sido discretos no 1º, fizeram-se ardentes e brados chamaram a autora. Quando ela apareceu em cena, toda a plateia se ergueu para aclamar, longamente, unanimemente. No final do 3º nova glorificação e uma especial e justa chamada ao Sr. Eduardo Victorino, fazendo-se então larga distribuição de palmas por todos os artistas.

A peça
Ilda chama-se filha querida da viúva D. Elvira, que o marido deixou em triste situação.
Para que a Ilda nada faltasse impos-se a mãe extremosa os mais duros, os mais tremendos, os mais ignorados sacrifícios.
E Ilda cresceu feliz e formosa, prendada e boa e é hoje uma linda moça que o Sr. Gustavo, guapo e rico engenheiro vêm pedir em casamento.
D. Elvira, zelosa de seu tesouro, abre ao apaixonado moço o seu coração cheio de ternura pela filha, conta-lhe o que ninguém sabe, os trabalhos, os martírios por que passou para a fazer feliz, diz simplesmente, comoventemente toda a odisséia da sua existência difícil de viúva e mãe pobre e termina por exigir do ardente noivo a promessa de que há de dar a Ilda ventura igual, se não maior do que a fruída até então.
Ele promete e a viúva jura-lhe que será um cão de fila a vigiar, a guardar a sua filha ao lado do esposo.
Dez anos passam e Ilda que o marido descura um pouco, seduzido por aventuras extraconjugais, está a pique de perder-se, de ceder a um amor adulterino.
O boato, o “diz-se”, fala já nesse amor que ainda é apenas flirt e o marido que pouco antes sabe desse “diz-se” ao encontrar a esposa em colóquio com o galã que lhe quer roubar, apunha-la.
O último ato é a volta do Dr. Gustavo à casa, absolvido pelo júri, festejado, glorificado, pelos seus amigos e pela assistência da sessão judiciária que chega a achá-lo herói e não assassino.
O cão de fila, o amor que não perdoa, a mãe angustiada, a triste D. Elvira sobrevém e vinga a filha punindo o que a justiça dos homens deixou impune.
É este, em traços largos, o entrecho da peça de D. Julia Lopes de Almeida.
É uma peça de ação vigorosa, com incursões de perfeita observação pela comédia de costumes e é ainda um ataque forte aos erros funestos do júri, em nossa terra.
Encerra, pois, como intuitos três qualidades apreciáveis.
Tecnicamente tem a nosso ver o defeito de obrigar a duas mortes em cena, o que é sempre um mal desde que não haja artistas geniais para reproduzirem essas mortes.
Afora isso, afirma a peça, na sua autora, grandes qualidades de dialogadora, e mesmo de carpintaria teatral, pois são de bom comediógrafo as cenas todas de D. Angela de Vieira, de Cardoso, e são de dramaturgo seguro não só as situações fortes, como o tipo de Cardoso e as cenas de D. Elvira e Dr. Gustavo, no primeiro ato; D. Elvira e Ilda, no segundo e a de Cardoso e Dr. Gustavo, no terceiro.
Há ainda que o movimento de personagens, quanto está cheia a cena, é bom e que a linguagem é perfeitamente teatral, sem deixar de ser literária e sem deixar de ser brasileira, ou antes, carioca.
É, pois, uma peça Quem não perdoa do dramaturgo há tanto a esperar como já deu o romancista ilustre e glorioso que é D. Julia Lopes de Almeida.

O desempenho
Uma tentativa tão bem iniciada como a de ontem, exige que o crítico faça crítica e não se limite a louvar mansamente falhas, que podem ser reparadas, erros que podem ser emendados.
Há senões do desempenho e naturais, naturalíssimos numa troupe em que há inexperientes e em que os próprios veteranos não estão, há tempos, treinados em representar juntos.
Calar esses senões seria imperdoável, seria um mau serviço. Não o faremos.
As honras da noite pertencem a Sra. Maria Falcão. É dela o grande papel belamente conduzido. A parte de dizer, todo de emoção reprimida, foi feito com uma meia tinta muito sóbria e os dois lances dramáticos, nos finais do 2º e do 3º ato foram de bom quilate, de muito vigor.
A Sra. Lucilia Peres tem o mais difícil papel da peça. Ilda é uma figura de psicologia complicada. A Sra. Lucilia interpreta-o romântica; nós achamos ao personagem mais linha de mulher de ímpetos, de paixões, de arrojos do que de romantismo. É uma opinião. A verdade, porém, é que como a traça a Sra. Lucilia dá o tipo resultado mesmo podendo-se acusá-lo de um pouco piegas e amaneirado.
A cena com Manoel Ramires, no 2º ato, foi bem feita e na morte teve uns arquejos impressionantes.
A Sra. Luiza de Oliveira foi uma triunfadora em toda linha, num tipo de comédia muito bem delineado e sustentado. De princípio a fim sustentou gloriosamente o caráter do personagem e tem direito a todos os louvores.
O Sr. Ramos é um ator que estuda e progride. A sua interpretação do Dr. Gustavo mostra bem que não foi em vão que o vimos assistir interessado as representações de Guitry e de Novelli.
A sua maneira artística ganhou com isso leveza e simplicidade de processos. Discreto no 1º ato, bem na agitação do 2º, sóbrio na aflição do 3º, o Sr. Ramos sustentou bravamente um papel que tem altas responsabilidades. Muito bem.
O Sr. Ferreira de Souza é sempre um ator de autoridade. O seu papel é nada para os seus méritos, mas quando está em cena, está sempre animada e movida a cena. Bom tipo, boa apresentação, bom trabalho o seu Vieira.
O Sr. Abreu tem, a nosso ver, o mais belo papel masculino da peça: o Cardoso. O Sr. Abreu dá-lhe uma feição um tanto hostil. Parece-nos que ganharia o tipo em ser feito apenas com amargura. Não é um mau, o Cardoso, é um desgraçado, é um homem que sofreu. Depois o Sr. Abreu, que tem bastante habilidade e diz bem, caracterizou mal o personagem: os traços eram demais visíveis.
O Sr. João Barbosa teve também papel aquém dos seus recursos, que lhe deu, porém, ensejo para uma cena excelentemente feita, a do 2º ato com Gustavo, cena nada fácil.
E chegamos aos novos.
Destes destacaremos a Sra. Corina Fróes, que mostrou uma certa desenvoltura na cena que tem no primeiro ato, e o Sr. Alvaro Costa.
A situação do Manuel Ramires, que coube a este, não é cômoda. Um resvalo atirará o tipo ao ridículo. O Sr. Costa não resvalou, e isso já é muito, em um principiante.
Os outros julgaremos em outras peças. Mostraram-se ainda muito hesitantes todos, com exceção da Sra. Fulvia Castelo Branco, que tem mais desembaraço, mas cuja dicção é prejudicada pelo sotaque estrangeiro.

A MISE-EN-SCENE
Soberba a mise-en-scéne se a considerarmos em conjunto.
Os nossos cenógrafos triunfaram lindamente como cenógrafos, mas a exceção do Sr. Joaquim Santos, autor do terceiro ato, erraram como observadores.
O do primeiro ato, do Sr. Jayme Silva, é admirável como sala de casa moderna. A casa da Dona Elvira, porém, é uma velha casa do velho Rio, casa que ela teve de herança e que a sua pobreza em vinte anos não deixou reparar. Não podia ter aquele papel de gosto e padrão muito mais recente, nem aquelas janelas das construções de hoje.
O Sr. Lazacy, no segundo ato também apresenta uma magnífica sala de fundo envidraçado, não muito, não muito dos nossos hábitos. Isso, porém, passaria se a paisagem ao fundo fosse de jardim ou parque carioca. As árvores, porém, não são nossas nem tão pouco é nosso aquele horizonte tão longínquo e sem morro, sem mais árvores.
Em todo caso, louvemos os nossos cenógrafos pela limpeza, pelo acabado dos seus trabalhos.
O mobiliário bom. No primeiro ato há duas cadeiras de balanço moderne-style, que não justificam.
Adereços apropriados, enfeites bons, tudo, tudo muito para aplaudir.
As marcações boas em geral, principalmente bem dispostos os grupos. A saída da Sra. Fulvia , parece-nos, deve ser menos provocadora.
Não concordamos com o jaquetão e o chapéu mole que traz o advogado que acaba de defender o Dr. Gustavo no júri. A sobrecasaca, ou pelo menos, o frack preto seria de rigor no caso.
Todas essas falhas mínimas não prejudicaram, porém, o grande êxito que foram a estreia da Companhia Dramática e a peça de D. Julia Lopes de Almeida.

Nos intervalos
Um crescendo de animação nos intervalos. Poucos patins e muitas exclamações.
A caixa esteve sempre cheia de amigos e admiradores da autora, que a iam cumprimentar entusiasmados.
As senhoras mostravam-se radiantes com o ser a peça de uma pessoa do seu sexo.
Na sua friza, uma formosa senhora mostrava-se admirada de que a autora tivesse tido coragem de matar alguém...mesmo em cena.
- Ela tão boa!...Tão boa.
Tranquilizamos Mme. dizendo-lhe que a autora prometera no ensaio geral que em futuras peças, não mataria mais ninguém.
Na plateia uma outra senhora conta-nos que, d’onde está só ouve metade do que se diz.
Aconselhamos-lhe que vá a 2ª representação para ouvir a outra metade.
Palestramos um momento com uma linda dama que adora os jeux-de-mots. Sabe um novo Mme. e no-lo transmite:
- Pourquoi D. Quixote est il si bouillant?...
Não sabemos francamente. Bondosa, explica:
- Par ce qu’il a tourjours un Sanchô (sang chaud)...
Muito bom, não há dúvida...



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"Parabéns, pois, às Letras Nacionais"


BRAZIL – 02/10/1912

Municipal – Estreia a Companhia Dramática Nacional – Quem não perdoa, 3 atos de D. Julia Lopes de Almeida

Impressão Geral
Se dependesse apenas da noite de estreia, a vitória da tentativa de ressurgimento do teatro nacional de drama e comédia, poder-se-ia dizer que a batalha estava ganha.
Porque foi um triunfo completo a representação da peça de D. Julia Lopes de Almeida.
No correr do espetáculo aqui e ali, pequenas deficiências de desempenho, senões remediáveis, pareciam indicar que no balanço final houvesse razão para lembrar um que e outro defeito.
Tal se não deu, porém, porque as cenas fortes, as cenas boas, de excelente comédia ou de drama vigoroso, apagaram tais lembranças e no fim da noite a impressão geral foi de que há um punhado de artistas muito aproveitável no nosso meio, uma nova boa peça e um novo bom dramaturgo, no Teatro Brasileiro.
Parabéns, pois, às Letras Nacionais.

A sala
Enchente real, Real e linda.
O tout Rio, supremamente chic e elegante não quis mostrar desinteresse pelo Teatro Nacional e afluiu todo, no deslumbramento de lindíssimas toilettes femininas, na distinção severa de smockings irrepreensíveis ou de fracks bem talhados.
Na tribuna presidencial, o Sr. Marechal Presidente, com a sua casa militar. Em frente o Sr. General Prefeito Municipal e sua Exma. esposa.
Pelas frizas e camarotes, pela plateia e balcões, nomes dos mais citados nas crônicas mundanas, senhoras das mais formosas, senhoritas das mais graciosas e homens de letras, de arte, da política, de imprensa, do comércio, da indústria, do alto funcionalismo, etc...etc.
Lá em cima então, no alto palanque d’onde irrompem as ovações vigorosas, o povo – uma multidão numerosa e atenta.
E, em baixo, em cima, por toda a parte uma expectativa simpática, uma confiança nos nomes dos que iam jogar a grande cartada: D. Julia Lopes de Almeida e Sr. Eduardo Victorino.
Ao final do 2º ato, os aplausos que haviam sido discretos no 1º, fizeram-se ardentes e brados chamaram a autora. Quando ela apareceu em cena, toda a plateia se ergueu para aclamar, longamente, unanimemente. No final do 3º nova glorificação e uma especial e justa chamada ao Sr. Eduardo Victorino, fazendo-se então larga distribuição de palmas por todos os artistas.

A peça
Ilda chama-se filha querida da viúva D. Elvira, que o marido deixou em triste situação.
Para que a Ilda nada faltasse impos-se a mãe extremosa os mais duros, os mais tremendos, os mais ignorados sacrifícios.
E Ilda cresceu feliz e formosa, prendada e boa e é hoje uma linda moça que o Sr. Gustavo, guapo e rico engenheiro vêm pedir em casamento.
D. Elvira, zelosa de seu tesouro, abre ao apaixonado moço o seu coração cheio de ternura pela filha, conta-lhe o que ninguém sabe, os trabalhos, os martírios por que passou para a fazer feliz, diz simplesmente, comoventemente toda a odisséia da sua existência difícil de viúva e mãe pobre e termina por exigir do ardente noivo a promessa de que há de dar a Ilda ventura igual, se não maior do que a fruída até então.
Ele promete e a viúva jura-lhe que será um cão de fila a vigiar, a guardar a sua filha ao lado do esposo.
Dez anos passam e Ilda que o marido descura um pouco, seduzido por aventuras extraconjugais, está a pique de perder-se, de ceder a um amor adulterino.
O boato, o “diz-se”, fala já nesse amor que ainda é apenas flirt e o marido que pouco antes sabe desse “diz-se” ao encontrar a esposa em colóquio com o galã que lhe quer roubar, apunha-la.
O último ato é a volta do Dr. Gustavo à casa, absolvido pelo júri, festejado, glorificado, pelos seus amigos e pela assistência da sessão judiciária que chega a achá-lo herói e não assassino.
O cão de fila, o amor que não perdoa, a mãe angustiada, a triste D. Elvira sobrevém e vinga a filha punindo o que a justiça dos homens deixou impune.
É este, em traços largos, o entrecho da peça de D. Julia Lopes de Almeida.
É uma peça de ação vigorosa, com incursões de perfeita observação pela comédia de costumes e é ainda um ataque forte aos erros funestos do júri, em nossa terra.
Encerra, pois, como intuitos três qualidades apreciáveis.
Tecnicamente tem a nosso ver o defeito de obrigar a duas mortes em cena, o que é sempre um mal desde que não haja artistas geniais para reproduzirem essas mortes.
Afora isso, afirma a peça, na sua autora, grandes qualidades de dialogadora, e mesmo de carpintaria teatral, pois são de bom comediógrafo as cenas todas de D. Angela de Vieira, de Cardoso, e são de dramaturgo seguro não só as situações fortes, como o tipo de Cardoso e as cenas de D. Elvira e Dr. Gustavo, no primeiro ato; D. Elvira e Ilda, no segundo e a de Cardoso e Dr. Gustavo, no terceiro.
Há ainda que o movimento de personagens, quanto está cheia a cena, é bom e que a linguagem é perfeitamente teatral, sem deixar de ser literária e sem deixar de ser brasileira, ou antes, carioca.
É, pois, uma peça Quem não perdoa do dramaturgo há tanto a esperar como já deu o romancista ilustre e glorioso que é D. Julia Lopes de Almeida.

O desempenho
Uma tentativa tão bem iniciada como a de ontem, exige que o crítico faça crítica e não se limite a louvar mansamente falhas, que podem ser reparadas, erros que podem ser emendados.
Há senões do desempenho e naturais, naturalíssimos numa troupe em que há inexperientes e em que os próprios veteranos não estão, há tempos, treinados em representar juntos.
Calar esses senões seria imperdoável, seria um mau serviço. Não o faremos.
As honras da noite pertencem a Sra. Maria Falcão. É dela o grande papel belamente conduzido. A parte de dizer, todo de emoção reprimida, foi feito com uma meia tinta muito sóbria e os dois lances dramáticos, nos finais do 2º e do 3º ato foram de bom quilate, de muito vigor.
A Sra. Lucilia Peres tem o mais difícil papel da peça. Ilda é uma figura de psicologia complicada. A Sra. Lucilia interpreta-o romântica; nós achamos ao personagem mais linha de mulher de ímpetos, de paixões, de arrojos do que de romantismo. É uma opinião. A verdade, porém, é que como a traça a Sra. Lucilia dá o tipo resultado mesmo podendo-se acusá-lo de um pouco piegas e amaneirado.
A cena com Manoel Ramires, no 2º ato, foi bem feita e na morte teve uns arquejos impressionantes.
A Sra. Luiza de Oliveira foi uma triunfadora em toda linha, num tipo de comédia muito bem delineado e sustentado. De princípio a fim sustentou gloriosamente o caráter do personagem e tem direito a todos os louvores.
O Sr. Ramos é um ator que estuda e progride. A sua interpretação do Dr. Gustavo mostra bem que não foi em vão que o vimos assistir interessado as representações de Guitry e de Novelli.
A sua maneira artística ganhou com isso leveza e simplicidade de processos. Discreto no 1º ato, bem na agitação do 2º, sóbrio na aflição do 3º, o Sr. Ramos sustentou bravamente um papel que tem altas responsabilidades. Muito bem.
O Sr. Ferreira de Souza é sempre um ator de autoridade. O seu papel é nada para os seus méritos, mas quando está em cena, está sempre animada e movida a cena. Bom tipo, boa apresentação, bom trabalho o seu Vieira.
O Sr. Abreu tem, a nosso ver, o mais belo papel masculino da peça: o Cardoso. O Sr. Abreu dá-lhe uma feição um tanto hostil. Parece-nos que ganharia o tipo em ser feito apenas com amargura. Não é um mau, o Cardoso, é um desgraçado, é um homem que sofreu. Depois o Sr. Abreu, que tem bastante habilidade e diz bem, caracterizou mal o personagem: os traços eram demais visíveis.
O Sr. João Barbosa teve também papel aquém dos seus recursos, que lhe deu, porém, ensejo para uma cena excelentemente feita, a do 2º ato com Gustavo, cena nada fácil.
E chegamos aos novos.
Destes destacaremos a Sra. Corina Fróes, que mostrou uma certa desenvoltura na cena que tem no primeiro ato, e o Sr. Alvaro Costa.
A situação do Manuel Ramires, que coube a este, não é cômoda. Um resvalo atirará o tipo ao ridículo. O Sr. Costa não resvalou, e isso já é muito, em um principiante.
Os outros julgaremos em outras peças. Mostraram-se ainda muito hesitantes todos, com exceção da Sra. Fulvia Castelo Branco, que tem mais desembaraço, mas cuja dicção é prejudicada pelo sotaque estrangeiro.

A MISE-EN-SCENE
Soberba a mise-en-scéne se a considerarmos em conjunto.
Os nossos cenógrafos triunfaram lindamente como cenógrafos, mas a exceção do Sr. Joaquim Santos, autor do terceiro ato, erraram como observadores.
O do primeiro ato, do Sr. Jayme Silva, é admirável como sala de casa moderna. A casa da Dona Elvira, porém, é uma velha casa do velho Rio, casa que ela teve de herança e que a sua pobreza em vinte anos não deixou reparar. Não podia ter aquele papel de gosto e padrão muito mais recente, nem aquelas janelas das construções de hoje.
O Sr. Lazacy, no segundo ato também apresenta uma magnífica sala de fundo envidraçado, não muito, não muito dos nossos hábitos. Isso, porém, passaria se a paisagem ao fundo fosse de jardim ou parque carioca. As árvores, porém, não são nossas nem tão pouco é nosso aquele horizonte tão longínquo e sem morro, sem mais árvores.
Em todo caso, louvemos os nossos cenógrafos pela limpeza, pelo acabado dos seus trabalhos.
O mobiliário bom. No primeiro ato há duas cadeiras de balanço moderne-style, que não justificam.
Adereços apropriados, enfeites bons, tudo, tudo muito para aplaudir.
As marcações boas em geral, principalmente bem dispostos os grupos. A saída da Sra. Fulvia , parece-nos, deve ser menos provocadora.
Não concordamos com o jaquetão e o chapéu mole que traz o advogado que acaba de defender o Dr. Gustavo no júri. A sobrecasaca, ou pelo menos, o frack preto seria de rigor no caso.
Todas essas falhas mínimas não prejudicaram, porém, o grande êxito que foram a estreia da Companhia Dramática e a peça de D. Julia Lopes de Almeida.

Nos intervalos
Um crescendo de animação nos intervalos. Poucos patins e muitas exclamações.
A caixa esteve sempre cheia de amigos e admiradores da autora, que a iam cumprimentar entusiasmados.
As senhoras mostravam-se radiantes com o ser a peça de uma pessoa do seu sexo.
Na sua friza, uma formosa senhora mostrava-se admirada de que a autora tivesse tido coragem de matar alguém...mesmo em cena.
- Ela tão boa!...Tão boa.
Tranquilizamos Mme. dizendo-lhe que a autora prometera no ensaio geral que em futuras peças, não mataria mais ninguém.
Na plateia uma outra senhora conta-nos que, d’onde está só ouve metade do que se diz.
Aconselhamos-lhe que vá a 2ª representação para ouvir a outra metade.
Palestramos um momento com uma linda dama que adora os jeux-de-mots. Sabe um novo Mme. e no-lo transmite:
- Pourquoi D. Quixote est il si bouillant?...
Não sabemos francamente. Bondosa, explica:
- Par ce qu’il a tourjours un Sanchô (sang chaud)...
Muito bom, não há dúvida...



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domingo, 14 de abril de 2013

"Afinal aí está o Teatro Nacional"


(sem referência) – 02/10/1912

O TEATRO NACIONAL

O início da temporada, ontem, no Municipal com “Quem não perdoa”, peça em 3 atos, de D. Julia Lopes de Almeida.

Afinal aí está o Teatro Nacional. Nasceu ontem, é infantezinho, mas uma criança rosada e linda, com uns olhitos bem abertos, de quem já conhece o mundo em que vai viver... Nós, que lutamos desde o começo ao lado de Coelho Netto e de Eduardo Victorino, que batemos palmas ao sr. Prefeito e aos srs. Intendentes pela sua obra, estamos contentíssimos. A noite de ontem mostrou que temos artistas inteligentes e que trabalham, ensaiadores que conhecem a sua profissão, cenógrafos convenientes.

***


A noite de ontem mostrou mais: que o Teatro Nacional pode funcionar sem perigo de faltar-lhe a matéria prima, as peças. O espetáculo deu-nos uma, de alguém que recebeu ovações daquelas concedidas apenas aos grandes autores. Alguém que já era um dos nossos grandes escritores, e que reúne a tudo isso o encanto feminino, nome dos mais queridos da nossa sociedade – D. Julia Lopes de Almeida.
“Quem não perdoa” é uma peça formosa, com aquele suave perfume das coisas boas e lindas, que o bom e belo espírito de D. Julia sabe espalhar pelas suas obras.
É a história, entretanto, de um lar que se desmorona, de duas vidas que são afogadas em sangue. Uma história triste, dolorosa, como tantas outras que encontramos ainda vivas, intermináveis, por aí, a cada passo, esperando o seu dia de sangue, que o Amor bebe, insaciável... Uma história que D. Julia contou, com uma encantadora naturalidade, em três atos absolutamente discretos e bons.

D. Elvira é viúva e pobre, mas tem a riqueza de uma filha encantadora, Ilda. Do meio de sua quase miséria quer tira-la o amor: Gustavo, rico e moço, que ama Ilda e pede a sua mão. A mãe extremosa, conhecedora do mundo e dos amores humanos, hesita, intimida Gustavo: velaria pela felicidade de Ilda “como um cão de fila à porta do seu dono”. E o primeiro ato, numa exposição clara e simples, termina entre os protestos de amor e fidelidade de Gustavo.
Mas... depois do 1º ato, vem o 2º, tanto nas peças como na vida. E o de ontem, no Municipal, mostrou mais um marido, casado de anos, cansado dos mesmos beijos, apesar dos lábios magníficos, a fugir da monotonia nos braços das amantes. E, além desse marido, que é Gustavo, a mãe extremosa da pobre mulherzinha, que lhe adivinhou a solidão de esposa abandonada, com o oasis de um novo amor, “desta vez sincero”, e o espectro do adultério a rondar aquele coração moço e desprezado.
Provocando o assunto, D. Elvira conta a Ilda como a vida é cruel para as mulheres: que ela já sofreu assim, mas que ninguém lhe viu nas lágrimas de esposa esquecida o clarão de um outro afeto que sacrificou sempre, nem “ele” mesmo soube... Mas Ilda, que promete sacrificar-se também, diante da mãezinha, deixa-se conduzir pelo coração já desvairado; e, talvez porque não tenha uma filha para igualmente se sacrificar por ela esvazia a casa com hábeis pretextos, e numa tarde, na sua linda sala, recebe pela primeira vez o seu amado.
O seu amado? Sim, Manuel Ramires, um jovem secretário de legação, que parte no dia seguinte – sem nunca ter tido um simples beijo seu, e que a ama, segundo diz...
Afinal, o respeito de Ramires por aquele lar faz com que o arrebatamento de Ilda, um belo tipo de mulher apaixonada, termine pelo “nunca mais” dos que se suicidam um para o outro, com a separação.
E numa hora de separação, por que não, ao menos, um beijo?
Aliás, eles não raciocinaram no palco. E, na inconsciência de um egoísmo que luta antes do suicídio, perderam-se no beijo primeiro e último.
Perderam-se, não. Ela se perdeu.
Ele, ao contrário, saiu, foi-se a continuar a vida, sem ouvir os gritos de uma pobre mulher apunhalada.
Gustavo viu o beijo, de fora, na varanda. Fora já avisado das “suspeitas” da maledicência geral; estava a buscar um meio de acreditar ser tempo ainda de salvar Ilda. Viu e não hesitou: misturou com sangue a doçura do beijo que estava a descer ao coração da esposa, beijo que pensava ser o “último” e era o primeiro...
Naturalmente, no 3º ato, há um júri que absolve unanimemente o “marido defensor da honra ultrajada”, que assassinou a mulher num fragrante de adultério. A cena é a casa do viúvo assassino. Há meninas casamenteiras que se candidatam, uma tia e um tio, muito boas caricaturas dos nossos, há amigos que esperam Gustavo absolvido, que sai da prisão. Mas há também a casa com os retratos da morta e sem os criados do outro tempo. As caras novas parecem-lhe, a Gustavo,, como que espectros da sua vítima. E, depois que os amigos se vão, entre eles o marido da sua amante última, que veio saudar o “exemplo da sociedade”, alguém – “quem não perdoa” – vem arrancar o desgraçado da conversa silenciosa e torturante com o seu remorso, que também não lhe quer perdoar.
É D. Elvira, a mãe de Ilda, a última visita daquele dia de absolvição e cumprimentos; o remorso encarnado que cresceu com o ódio lindo de um coração de mãe, e que vem buscar-lhe a vida, ao assassino, varando-lhe a garganta como prometera, como um “cão de fila”, que mata o ladrão do seu único bem, da sua felicidade. E o velário desce enquanto na janela, para a rua, para o sol, para a vida, a pobre velha grita que matou um homem, “um homem honrado”.

Não é preciso elogiar-se esta peça. O seu enredo mostra o que ela é. A sua feitura, sim, deve esperar um justo louvor de todos os críticos. As duas violências sangrentas, mesmo, os dois assassinatos, têm a atenuar-lhes a dureza, no 2º ato, aquele belo descobrir lento, por D. Elvira, da morte da filha; no 3º ato, o final magnífico, de arte vibrante e nova, após a vingança, daquela confissão desesperada de mãe, gritada para a rua.
***
Quem escreve estas linhas não teve tempo de assistir nem ao ensaio geral. Não pôde, pois, à primeira vez dizer tudo sobre o desempenho da peça. Diz, porém, alguma coisa sincera, desde já.
Num grande destaque, não se sabe o que mais louvar: se a correção da artista que é, desde muito, Maria Falcão (D. Elvira), se a progressiva afirmação artística com que Lucilia Peres (Ilda), na sua linda mocidade tanto faz e mais promete pelo Teatro Nacional. O trabalho de Lucilia, ontem, mostrou como a jovem patrícia estuda e evolui na sua arte. Aquela cena, com D. Elvira, no 2º ato, deu-nos ali, no palco do Municipal, uma Lucilia que vai em breve encontrar definitivamente os autores brasileiros.
Maria Falcão, no 1º ato, na cena acima referida, do 2º, nos finais do 2º e do 3º, justificou bem a confiança de D. Julia, entregando-lhe o papel de D. Elvira.
João Barboza e Ferreira de Souza, Luiza de Oliveira, muito bem. Bem Alvaro Costa e os demais artistas. Um conjunto que não desafinou.
Nota de registrar, a linda romanza do 3º ato, uma faceirice musical, escrita expressamente por Alberto Nepomuceno.
***
Afinal, o Teatro Nacional nasceu ontem. A sala radiosamente cheia do Municipal, num dos seus dias gloriosos, não economizou aplausos. E Eduardo Victorino perguntava ao fim, com emoção, numa roda de amigos entre os bastidores, sobre aquele trabalho todo:
- Honesto? Vocês acham?
Mas as palmas intermináveis, na plateia, respondiam antes, melhor que nós.
S.S.



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