domingo, 14 de abril de 2013

"Afinal aí está o Teatro Nacional"


(sem referência) – 02/10/1912

O TEATRO NACIONAL

O início da temporada, ontem, no Municipal com “Quem não perdoa”, peça em 3 atos, de D. Julia Lopes de Almeida.

Afinal aí está o Teatro Nacional. Nasceu ontem, é infantezinho, mas uma criança rosada e linda, com uns olhitos bem abertos, de quem já conhece o mundo em que vai viver... Nós, que lutamos desde o começo ao lado de Coelho Netto e de Eduardo Victorino, que batemos palmas ao sr. Prefeito e aos srs. Intendentes pela sua obra, estamos contentíssimos. A noite de ontem mostrou que temos artistas inteligentes e que trabalham, ensaiadores que conhecem a sua profissão, cenógrafos convenientes.

***


A noite de ontem mostrou mais: que o Teatro Nacional pode funcionar sem perigo de faltar-lhe a matéria prima, as peças. O espetáculo deu-nos uma, de alguém que recebeu ovações daquelas concedidas apenas aos grandes autores. Alguém que já era um dos nossos grandes escritores, e que reúne a tudo isso o encanto feminino, nome dos mais queridos da nossa sociedade – D. Julia Lopes de Almeida.
“Quem não perdoa” é uma peça formosa, com aquele suave perfume das coisas boas e lindas, que o bom e belo espírito de D. Julia sabe espalhar pelas suas obras.
É a história, entretanto, de um lar que se desmorona, de duas vidas que são afogadas em sangue. Uma história triste, dolorosa, como tantas outras que encontramos ainda vivas, intermináveis, por aí, a cada passo, esperando o seu dia de sangue, que o Amor bebe, insaciável... Uma história que D. Julia contou, com uma encantadora naturalidade, em três atos absolutamente discretos e bons.

D. Elvira é viúva e pobre, mas tem a riqueza de uma filha encantadora, Ilda. Do meio de sua quase miséria quer tira-la o amor: Gustavo, rico e moço, que ama Ilda e pede a sua mão. A mãe extremosa, conhecedora do mundo e dos amores humanos, hesita, intimida Gustavo: velaria pela felicidade de Ilda “como um cão de fila à porta do seu dono”. E o primeiro ato, numa exposição clara e simples, termina entre os protestos de amor e fidelidade de Gustavo.
Mas... depois do 1º ato, vem o 2º, tanto nas peças como na vida. E o de ontem, no Municipal, mostrou mais um marido, casado de anos, cansado dos mesmos beijos, apesar dos lábios magníficos, a fugir da monotonia nos braços das amantes. E, além desse marido, que é Gustavo, a mãe extremosa da pobre mulherzinha, que lhe adivinhou a solidão de esposa abandonada, com o oasis de um novo amor, “desta vez sincero”, e o espectro do adultério a rondar aquele coração moço e desprezado.
Provocando o assunto, D. Elvira conta a Ilda como a vida é cruel para as mulheres: que ela já sofreu assim, mas que ninguém lhe viu nas lágrimas de esposa esquecida o clarão de um outro afeto que sacrificou sempre, nem “ele” mesmo soube... Mas Ilda, que promete sacrificar-se também, diante da mãezinha, deixa-se conduzir pelo coração já desvairado; e, talvez porque não tenha uma filha para igualmente se sacrificar por ela esvazia a casa com hábeis pretextos, e numa tarde, na sua linda sala, recebe pela primeira vez o seu amado.
O seu amado? Sim, Manuel Ramires, um jovem secretário de legação, que parte no dia seguinte – sem nunca ter tido um simples beijo seu, e que a ama, segundo diz...
Afinal, o respeito de Ramires por aquele lar faz com que o arrebatamento de Ilda, um belo tipo de mulher apaixonada, termine pelo “nunca mais” dos que se suicidam um para o outro, com a separação.
E numa hora de separação, por que não, ao menos, um beijo?
Aliás, eles não raciocinaram no palco. E, na inconsciência de um egoísmo que luta antes do suicídio, perderam-se no beijo primeiro e último.
Perderam-se, não. Ela se perdeu.
Ele, ao contrário, saiu, foi-se a continuar a vida, sem ouvir os gritos de uma pobre mulher apunhalada.
Gustavo viu o beijo, de fora, na varanda. Fora já avisado das “suspeitas” da maledicência geral; estava a buscar um meio de acreditar ser tempo ainda de salvar Ilda. Viu e não hesitou: misturou com sangue a doçura do beijo que estava a descer ao coração da esposa, beijo que pensava ser o “último” e era o primeiro...
Naturalmente, no 3º ato, há um júri que absolve unanimemente o “marido defensor da honra ultrajada”, que assassinou a mulher num fragrante de adultério. A cena é a casa do viúvo assassino. Há meninas casamenteiras que se candidatam, uma tia e um tio, muito boas caricaturas dos nossos, há amigos que esperam Gustavo absolvido, que sai da prisão. Mas há também a casa com os retratos da morta e sem os criados do outro tempo. As caras novas parecem-lhe, a Gustavo,, como que espectros da sua vítima. E, depois que os amigos se vão, entre eles o marido da sua amante última, que veio saudar o “exemplo da sociedade”, alguém – “quem não perdoa” – vem arrancar o desgraçado da conversa silenciosa e torturante com o seu remorso, que também não lhe quer perdoar.
É D. Elvira, a mãe de Ilda, a última visita daquele dia de absolvição e cumprimentos; o remorso encarnado que cresceu com o ódio lindo de um coração de mãe, e que vem buscar-lhe a vida, ao assassino, varando-lhe a garganta como prometera, como um “cão de fila”, que mata o ladrão do seu único bem, da sua felicidade. E o velário desce enquanto na janela, para a rua, para o sol, para a vida, a pobre velha grita que matou um homem, “um homem honrado”.

Não é preciso elogiar-se esta peça. O seu enredo mostra o que ela é. A sua feitura, sim, deve esperar um justo louvor de todos os críticos. As duas violências sangrentas, mesmo, os dois assassinatos, têm a atenuar-lhes a dureza, no 2º ato, aquele belo descobrir lento, por D. Elvira, da morte da filha; no 3º ato, o final magnífico, de arte vibrante e nova, após a vingança, daquela confissão desesperada de mãe, gritada para a rua.
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Quem escreve estas linhas não teve tempo de assistir nem ao ensaio geral. Não pôde, pois, à primeira vez dizer tudo sobre o desempenho da peça. Diz, porém, alguma coisa sincera, desde já.
Num grande destaque, não se sabe o que mais louvar: se a correção da artista que é, desde muito, Maria Falcão (D. Elvira), se a progressiva afirmação artística com que Lucilia Peres (Ilda), na sua linda mocidade tanto faz e mais promete pelo Teatro Nacional. O trabalho de Lucilia, ontem, mostrou como a jovem patrícia estuda e evolui na sua arte. Aquela cena, com D. Elvira, no 2º ato, deu-nos ali, no palco do Municipal, uma Lucilia que vai em breve encontrar definitivamente os autores brasileiros.
Maria Falcão, no 1º ato, na cena acima referida, do 2º, nos finais do 2º e do 3º, justificou bem a confiança de D. Julia, entregando-lhe o papel de D. Elvira.
João Barboza e Ferreira de Souza, Luiza de Oliveira, muito bem. Bem Alvaro Costa e os demais artistas. Um conjunto que não desafinou.
Nota de registrar, a linda romanza do 3º ato, uma faceirice musical, escrita expressamente por Alberto Nepomuceno.
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Afinal, o Teatro Nacional nasceu ontem. A sala radiosamente cheia do Municipal, num dos seus dias gloriosos, não economizou aplausos. E Eduardo Victorino perguntava ao fim, com emoção, numa roda de amigos entre os bastidores, sobre aquele trabalho todo:
- Honesto? Vocês acham?
Mas as palmas intermináveis, na plateia, respondiam antes, melhor que nós.
S.S.



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