domingo, 21 de abril de 2013

"Parabéns, pois, às Letras Nacionais"


BRAZIL – 02/10/1912

Municipal – Estreia a Companhia Dramática Nacional – Quem não perdoa, 3 atos de D. Julia Lopes de Almeida

Impressão Geral
Se dependesse apenas da noite de estreia, a vitória da tentativa de ressurgimento do teatro nacional de drama e comédia, poder-se-ia dizer que a batalha estava ganha.
Porque foi um triunfo completo a representação da peça de D. Julia Lopes de Almeida.
No correr do espetáculo aqui e ali, pequenas deficiências de desempenho, senões remediáveis, pareciam indicar que no balanço final houvesse razão para lembrar um que e outro defeito.
Tal se não deu, porém, porque as cenas fortes, as cenas boas, de excelente comédia ou de drama vigoroso, apagaram tais lembranças e no fim da noite a impressão geral foi de que há um punhado de artistas muito aproveitável no nosso meio, uma nova boa peça e um novo bom dramaturgo, no Teatro Brasileiro.
Parabéns, pois, às Letras Nacionais.

A sala
Enchente real, Real e linda.
O tout Rio, supremamente chic e elegante não quis mostrar desinteresse pelo Teatro Nacional e afluiu todo, no deslumbramento de lindíssimas toilettes femininas, na distinção severa de smockings irrepreensíveis ou de fracks bem talhados.
Na tribuna presidencial, o Sr. Marechal Presidente, com a sua casa militar. Em frente o Sr. General Prefeito Municipal e sua Exma. esposa.
Pelas frizas e camarotes, pela plateia e balcões, nomes dos mais citados nas crônicas mundanas, senhoras das mais formosas, senhoritas das mais graciosas e homens de letras, de arte, da política, de imprensa, do comércio, da indústria, do alto funcionalismo, etc...etc.
Lá em cima então, no alto palanque d’onde irrompem as ovações vigorosas, o povo – uma multidão numerosa e atenta.
E, em baixo, em cima, por toda a parte uma expectativa simpática, uma confiança nos nomes dos que iam jogar a grande cartada: D. Julia Lopes de Almeida e Sr. Eduardo Victorino.
Ao final do 2º ato, os aplausos que haviam sido discretos no 1º, fizeram-se ardentes e brados chamaram a autora. Quando ela apareceu em cena, toda a plateia se ergueu para aclamar, longamente, unanimemente. No final do 3º nova glorificação e uma especial e justa chamada ao Sr. Eduardo Victorino, fazendo-se então larga distribuição de palmas por todos os artistas.

A peça
Ilda chama-se filha querida da viúva D. Elvira, que o marido deixou em triste situação.
Para que a Ilda nada faltasse impos-se a mãe extremosa os mais duros, os mais tremendos, os mais ignorados sacrifícios.
E Ilda cresceu feliz e formosa, prendada e boa e é hoje uma linda moça que o Sr. Gustavo, guapo e rico engenheiro vêm pedir em casamento.
D. Elvira, zelosa de seu tesouro, abre ao apaixonado moço o seu coração cheio de ternura pela filha, conta-lhe o que ninguém sabe, os trabalhos, os martírios por que passou para a fazer feliz, diz simplesmente, comoventemente toda a odisséia da sua existência difícil de viúva e mãe pobre e termina por exigir do ardente noivo a promessa de que há de dar a Ilda ventura igual, se não maior do que a fruída até então.
Ele promete e a viúva jura-lhe que será um cão de fila a vigiar, a guardar a sua filha ao lado do esposo.
Dez anos passam e Ilda que o marido descura um pouco, seduzido por aventuras extraconjugais, está a pique de perder-se, de ceder a um amor adulterino.
O boato, o “diz-se”, fala já nesse amor que ainda é apenas flirt e o marido que pouco antes sabe desse “diz-se” ao encontrar a esposa em colóquio com o galã que lhe quer roubar, apunha-la.
O último ato é a volta do Dr. Gustavo à casa, absolvido pelo júri, festejado, glorificado, pelos seus amigos e pela assistência da sessão judiciária que chega a achá-lo herói e não assassino.
O cão de fila, o amor que não perdoa, a mãe angustiada, a triste D. Elvira sobrevém e vinga a filha punindo o que a justiça dos homens deixou impune.
É este, em traços largos, o entrecho da peça de D. Julia Lopes de Almeida.
É uma peça de ação vigorosa, com incursões de perfeita observação pela comédia de costumes e é ainda um ataque forte aos erros funestos do júri, em nossa terra.
Encerra, pois, como intuitos três qualidades apreciáveis.
Tecnicamente tem a nosso ver o defeito de obrigar a duas mortes em cena, o que é sempre um mal desde que não haja artistas geniais para reproduzirem essas mortes.
Afora isso, afirma a peça, na sua autora, grandes qualidades de dialogadora, e mesmo de carpintaria teatral, pois são de bom comediógrafo as cenas todas de D. Angela de Vieira, de Cardoso, e são de dramaturgo seguro não só as situações fortes, como o tipo de Cardoso e as cenas de D. Elvira e Dr. Gustavo, no primeiro ato; D. Elvira e Ilda, no segundo e a de Cardoso e Dr. Gustavo, no terceiro.
Há ainda que o movimento de personagens, quanto está cheia a cena, é bom e que a linguagem é perfeitamente teatral, sem deixar de ser literária e sem deixar de ser brasileira, ou antes, carioca.
É, pois, uma peça Quem não perdoa do dramaturgo há tanto a esperar como já deu o romancista ilustre e glorioso que é D. Julia Lopes de Almeida.

O desempenho
Uma tentativa tão bem iniciada como a de ontem, exige que o crítico faça crítica e não se limite a louvar mansamente falhas, que podem ser reparadas, erros que podem ser emendados.
Há senões do desempenho e naturais, naturalíssimos numa troupe em que há inexperientes e em que os próprios veteranos não estão, há tempos, treinados em representar juntos.
Calar esses senões seria imperdoável, seria um mau serviço. Não o faremos.
As honras da noite pertencem a Sra. Maria Falcão. É dela o grande papel belamente conduzido. A parte de dizer, todo de emoção reprimida, foi feito com uma meia tinta muito sóbria e os dois lances dramáticos, nos finais do 2º e do 3º ato foram de bom quilate, de muito vigor.
A Sra. Lucilia Peres tem o mais difícil papel da peça. Ilda é uma figura de psicologia complicada. A Sra. Lucilia interpreta-o romântica; nós achamos ao personagem mais linha de mulher de ímpetos, de paixões, de arrojos do que de romantismo. É uma opinião. A verdade, porém, é que como a traça a Sra. Lucilia dá o tipo resultado mesmo podendo-se acusá-lo de um pouco piegas e amaneirado.
A cena com Manoel Ramires, no 2º ato, foi bem feita e na morte teve uns arquejos impressionantes.
A Sra. Luiza de Oliveira foi uma triunfadora em toda linha, num tipo de comédia muito bem delineado e sustentado. De princípio a fim sustentou gloriosamente o caráter do personagem e tem direito a todos os louvores.
O Sr. Ramos é um ator que estuda e progride. A sua interpretação do Dr. Gustavo mostra bem que não foi em vão que o vimos assistir interessado as representações de Guitry e de Novelli.
A sua maneira artística ganhou com isso leveza e simplicidade de processos. Discreto no 1º ato, bem na agitação do 2º, sóbrio na aflição do 3º, o Sr. Ramos sustentou bravamente um papel que tem altas responsabilidades. Muito bem.
O Sr. Ferreira de Souza é sempre um ator de autoridade. O seu papel é nada para os seus méritos, mas quando está em cena, está sempre animada e movida a cena. Bom tipo, boa apresentação, bom trabalho o seu Vieira.
O Sr. Abreu tem, a nosso ver, o mais belo papel masculino da peça: o Cardoso. O Sr. Abreu dá-lhe uma feição um tanto hostil. Parece-nos que ganharia o tipo em ser feito apenas com amargura. Não é um mau, o Cardoso, é um desgraçado, é um homem que sofreu. Depois o Sr. Abreu, que tem bastante habilidade e diz bem, caracterizou mal o personagem: os traços eram demais visíveis.
O Sr. João Barbosa teve também papel aquém dos seus recursos, que lhe deu, porém, ensejo para uma cena excelentemente feita, a do 2º ato com Gustavo, cena nada fácil.
E chegamos aos novos.
Destes destacaremos a Sra. Corina Fróes, que mostrou uma certa desenvoltura na cena que tem no primeiro ato, e o Sr. Alvaro Costa.
A situação do Manuel Ramires, que coube a este, não é cômoda. Um resvalo atirará o tipo ao ridículo. O Sr. Costa não resvalou, e isso já é muito, em um principiante.
Os outros julgaremos em outras peças. Mostraram-se ainda muito hesitantes todos, com exceção da Sra. Fulvia Castelo Branco, que tem mais desembaraço, mas cuja dicção é prejudicada pelo sotaque estrangeiro.

A MISE-EN-SCENE
Soberba a mise-en-scéne se a considerarmos em conjunto.
Os nossos cenógrafos triunfaram lindamente como cenógrafos, mas a exceção do Sr. Joaquim Santos, autor do terceiro ato, erraram como observadores.
O do primeiro ato, do Sr. Jayme Silva, é admirável como sala de casa moderna. A casa da Dona Elvira, porém, é uma velha casa do velho Rio, casa que ela teve de herança e que a sua pobreza em vinte anos não deixou reparar. Não podia ter aquele papel de gosto e padrão muito mais recente, nem aquelas janelas das construções de hoje.
O Sr. Lazacy, no segundo ato também apresenta uma magnífica sala de fundo envidraçado, não muito, não muito dos nossos hábitos. Isso, porém, passaria se a paisagem ao fundo fosse de jardim ou parque carioca. As árvores, porém, não são nossas nem tão pouco é nosso aquele horizonte tão longínquo e sem morro, sem mais árvores.
Em todo caso, louvemos os nossos cenógrafos pela limpeza, pelo acabado dos seus trabalhos.
O mobiliário bom. No primeiro ato há duas cadeiras de balanço moderne-style, que não justificam.
Adereços apropriados, enfeites bons, tudo, tudo muito para aplaudir.
As marcações boas em geral, principalmente bem dispostos os grupos. A saída da Sra. Fulvia , parece-nos, deve ser menos provocadora.
Não concordamos com o jaquetão e o chapéu mole que traz o advogado que acaba de defender o Dr. Gustavo no júri. A sobrecasaca, ou pelo menos, o frack preto seria de rigor no caso.
Todas essas falhas mínimas não prejudicaram, porém, o grande êxito que foram a estreia da Companhia Dramática e a peça de D. Julia Lopes de Almeida.

Nos intervalos
Um crescendo de animação nos intervalos. Poucos patins e muitas exclamações.
A caixa esteve sempre cheia de amigos e admiradores da autora, que a iam cumprimentar entusiasmados.
As senhoras mostravam-se radiantes com o ser a peça de uma pessoa do seu sexo.
Na sua friza, uma formosa senhora mostrava-se admirada de que a autora tivesse tido coragem de matar alguém...mesmo em cena.
- Ela tão boa!...Tão boa.
Tranquilizamos Mme. dizendo-lhe que a autora prometera no ensaio geral que em futuras peças, não mataria mais ninguém.
Na plateia uma outra senhora conta-nos que, d’onde está só ouve metade do que se diz.
Aconselhamos-lhe que vá a 2ª representação para ouvir a outra metade.
Palestramos um momento com uma linda dama que adora os jeux-de-mots. Sabe um novo Mme. e no-lo transmite:
- Pourquoi D. Quixote est il si bouillant?...
Não sabemos francamente. Bondosa, explica:
- Par ce qu’il a tourjours un Sanchô (sang chaud)...
Muito bom, não há dúvida...



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