NOTICIA – 7/10/1912
Meu caro Eduardo Victorino:
Disseram-me que V. estava um tanto “zangado” com a crítica indígena...
Disseram-me... mas ninguém acredita em tal. A começar por mim, que tão bem conheço o seu espírito e a sua linha moral. Um homem do seu apuro não se zanga nunca: sorri superiormente, acha às vezes idiota o que os outros dizem, mas não se zanga.
Por isso eu fiquei incrédulo, quando me disseram que V. estava “zangado” com a crítica indígena.
Zangado, por quê? A Exma. Sra. D. Crítica, entrando para a sala do Municipal, de ouvido atento, e lápis apurado, prestou uma grata homenagem à nobre tentativa de que V. se acha à frente. Discutiu a peça com interesse, discutiu sua ação enérgica, analisar, descer a detalhes - provas apenas que essa rabugenta senhora a que nós desdenhamente chamamos “A Crítica” se interessa deveras por essa estreia que representa para V. a mais resplendente vitória.
Houve quem chamasse esse interesse e a essa análise “intolerância e má vontade”. Claro que V. não queria que a imprensa Rio se limitasse a duas linhas de noticiário, para o verdadeiro acontecimento que foi o espetáculo de 1º do corrente.
As duas linhas do noticiário a imprensa as reserva para as revistinhas de cinematógrafos. Tratando-se, porém, de uma nobre tentativa de arte, em que estão empenhados o seu nome, a sua atividade, a sua competência e a sua energia; tratando-se dessa importante questão do nosso teatro, a cuja frente aparece o nome brilhante e querido de Coelho Netto; tratando-se de estreia com a peça de uma das nossas escritoras de mais merecido renome – V. vê meu caro Victorino, que os rapazes de jornal não podiam ter para esse acontecimento os mesmos adjetivos banais e piedosos que escrevem para a representação das revistinhas – sem as ir ver.
Falta de consideração para com V., para com o nome brilhante que o pôs na frente dessa empreitada, e para com a autora da peça, seria se os jornais se tivessem limitado as tais duas linhas banais e elogiosas, com que recebem sempre as revistinhas dos cinematógrafos. Vendo que se tratava de um caso sério, de uma tentativa honesta, os jornais se interessaram por isso, e discutiram largamente o êxito da tentativa e o valor da peça.
Hostilidade, isso?... de maneira nenhuma. Certo, é bem possível que haja em muitas das apreciações, uma ou outra palavra que tenha “forçado a linha” – mas muito mais perigoso do que isso é a chamada crítica da crítica, que leva quase sempre a exageros lamentáveis.
Todo esse “barulho” que se fez em torno da sua nobre tentativa, parece-me, outra coisa não é senão o grande interesse manifestado pelo ressurgimento do Teatro no Brasil, e também uma justa homenagem prestada a V. e à autora da peça.
Tratando-se de um nome respeitado e querido como o que assina o trabalho com que V. estreou a sua companhia; e mais ainda: tratando-se de um trabalho julgado e premiado pela Academia de Letras – era de esperar, era certo esse apuro de análise rigorosa com que meia dúzia de rapazes assistiram à representação.
Foi pena – como tão superiormente disse um dos nossos cronistas mais elegantes – que nem todos adotassem, “por exemplo o critério da modelar crítica do Jornal do Comércio.”
Ai! caro Victorino! foi grande pena!... Mas, mesmo aí, creio que V. não ficasse zangado com a crítica indígena – só porque ela tivesse o modelar critério do crítico do Jornal. Nem isto de resto teria sido agradável a V. com essa unanimidade e elevação de juízo, V.: não poderia ter gosado a longa série de coisas “disparatadas e alegres” que foram escritas sobre a representação.
E nem disto, a culpa é sua: toda a culpa é da crítica indígena que quis escrever sobre a peça, sem ter o cuidado de perguntar como pensava o erudito crítico do Jornal.
Se nem todos podem ter – é evidente – o critério modelar aludido, é claro que V. não tem culpa nenhuma em que o resto da crítica andasse dando por paus e por pedras e escrevendo tolices... V. nenhuma culpa tem disto – nem tem razão para ficar zangado com “esses meninos que o divertem.”
Para V. seria mesmo sensaborão que todos os jornais tivessem dito a mesma coisa que disse o Jornal. Além de sensaborão, essa “unanimidade” de opinião pareceria um sermão encomendado ou um “juízo de favor” – coisa que tanto V. como a autora da peça repeliram enojados.
Por isso, eu não acredito que V., convencido do seu nobre esforço, e sabendo ver as coisas, tenha ficado zangado com a crítica.
Zangado teria ficado V. se os rapazes tivessem escrito as duas linhas elogiosas com que atiram a pá de cal sobre todas as borracheiras dos teatros por sessões; ou se todos tivessem copiado servilmente, em homenagem a V., a modelar crítica a que aludiu o elegante cronista.
As duas linhas elogiosas representariam um desinteresse condenável; a cópia do modelo, além de atestado de “auto-incompetência”, seria uma desatenção ou uma preguiça... V. mesmo não quereria tal, não quereria assim – e como a crítica indígena tenha tomado um grande interesse e tenha querido analisar minuciosamente o seu esforço e o trabalho que V. fez representar – vem agora os seus desafetos dizer que V. está zangado...
Eu não creio. Homem prático, experiente, inteligente, trabalhador, V. teria ficado zangado... se os jornais não discutissem a sua iniciativa e o seu esforço. Isto sim. Se toda a imprensa do Rio tivesse tido apenas três adjetivos lisonjeiros para o trabalho do Sr. Victorino – o Sr. Victorino ficaria zangado. Mas a imprensa compreendeu logo que se tratava de coisa séria: uma nobre tentativa de arte, o ressurgimento do nosso Teatro, a prova que podia decidir de vida ou de morte, entre nós, da “mais bela manifestação de inteligência humana” – e a imprensa lá foi pressurosa para o teatro, a querer ver, a querer aplaudir.
Ainda mais: tratava-se na estreia de um dos nomes mais respeitáveis e queridos na literatura contemporânea, o mesmo que assinara, no tempo da Exposição, aquela joia dramática que é A Herança e por isso a crítica indígena lá esteve au grand complet, a gozar uma noite de arte, e a querer prestar, tanto à competência do Sr. Victorino como ao talento da autora, as justas homenagens a que ambos têm direito.
Se depois disto, não houve uma absoluta justiça nas apreciações; se não houve uma unanimidade de louvores, e que ninguém é perfeito neste mundo, a crítica inclusive... A perfeição que pode às vezes ser um encanto, é quase sempre monótona. Agora mesmo, se todos os jornais tivessem sido unânimes em dizer que a estreia foi um “ruidoso sucesso”, essa unanimidade quase prejudicaria o resultado do seu nobre esforço, meu caro Victorino. Para que o bem tenha maior brilho, é preciso que o mal exista: e desta mesma vez foi escrito que “as restrições feitas por alguns jornais, nada mais foram do que o fundo escuro onde melhor podia brilhar o trabalho discutido.” E esta, creio, é a grande verdade.
A unanimidade de juízos prejudicaria o êxito do seu trabalho. E por isso V., embora não tivesse gostado de certos juízos (“ juízos ligeiros”, como dizia o nosso grande Eça) nem por isso teria ficado zangado com essa “intolerância”, como querem outros.
Sim. Se todos os jornais tivessem apenas dito: - “Representou-se ontem no Municipal a peça tal que agradou” – é certo que V. ficaria zangadíssimo e com toda a razão. Se mais preguiçosamente, esses rapazes que fazem a crítica indígena tivessem adiado a sua opinião para 24 horas depois, esperando a “crítica modelar” para copiá-la tal qual – V. teria agora o direito de os chamar de preguiçosos e incompetentes.
Mas não vá V. pensar, meu caro Victorino que eu queira aqui fazer a crítica das críticas... Oh! não! Deus me livre de tal. Faltam-me para isso a competência e o resto. Apenas como se tenha murmurado nos corredores do teatro que V. “tinha ficado zangado” com a crítica indígena pelos seus “juízos ligeiros”, eu comecei a pensar, a ver sua V. tinha razão.
Verifiquei desde logo que V. não está zangado. Um homem do seu espírito não se zanga nunca. Mas me lembrei também de que V. me poderia objetar:
- “Tu estás aí a falar, ó pequeno, porque o trabalho criticado não é teu.”
Sim meu caro, quando a gente é parte na questão, o modo de ver as coisas é outro. Cala e perdoa, quando há de que perdoar.
E aqui fico certo de que V. me perdoa estas linhas, - linhas que eu só escrevi porque me disseram que V. está “muito zangadinho”, quando eu tenho a certeza de que V. não está zangado nem nada. Com a ingênua intenção de querer restabelecer a verdade – quanto a V. – foi que me tornei tão ingenuamente prolixo e tão alegremente conselheiral... Perdoe V.. E acredite-me sincero admirador do seu esforço.
J. BRITO
A NOTA
A companhia organizada por Eduardo Victorino, para trabalhar no Municipal, ultima seus ensaios. Da competência de Eduardo Victorino não duvidamos, mesmo porque, desde há muito que lhe reconhecemos a autoridade.
Mas, há uma dúvida que nos assalta. Que língua falarão os atores que fazem parte da companhia Municipal? À primeira vista, essa pergunta parecerá um absurdo, mas nós a explicaremos.
A companhia tem artistas brasileiros e portugueses e cada qual dá às suas palavras o acento lusitano ou abrasileirado conforme o gosto de cada um. Ora, como a pronúncia é arbitrária, teremos para os nossos sinceros ouvidos a irritante assonância luso-brasileira. Como teria evitado este terrível vício Eduardo Victorino?
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