Acredito, que ao leitor constante de nosso Blog, pareçam repetição as inúmeras críticas de uma só peça da primeira década do século XX. Porém, em cada uma encontramos algo que acrescente, que surpreenda o texto já por nós conhecido, mesmo que não lido! Espero que assim encarem nosso esforço e nossa alegria em poder compartilhar tais preciosidades. (ERC)
Eduardo Victorino jovem |
COMMERCIO – s/d
TEATROS E MÚSICA
O TEATRO NACIONAL – Registremos a data auspiciosa de 1 de Outubro 1912 como o início do Teatro Nacional.
O ato da Prefeitura promovendo a concessão de uma subvenção, embora módica para a companhia nacional, e confiando ao Sr. Eduardo Victorino a organização dessa companhia merece francos louvores.
O Teatro Municipal tinha ontem o aspecto dos dias festivos e o sentimento que levou até lá a nossa melhor sociedade era muito outro que o snobismo.
A concorrência esteve brilhantíssima e S. Ex. o Sr. Presidente da República, acompanhado de sua Casa Militar, honrou essa récita inaugural com a sua presença. Começou o espetáculo às nove horas em ponto, representando-se a peça em três atos Quem não perdoa, original de D. Julia Lopes de Almeida.
1º ato. Ao levantar-se o pano vê-se uma sala pobremente mobiliada; nas paredes alguns quadros e manchas, no papel, denunciando o lugar de outros que já haviam sido retirados, talvez para serem vendidos, como nos faz supor o diálogo de um velho negociante de móveis usados, com seu sobrinho e caixeiro, numa cena de justa observação que obedece ao velho preceito da exposição preliminar, para dar ao espectador conhecimento dos acontecimentos que determinaram a situação em que se encontram no momento as principais personagens que vão viver em cena. Com efeito aparece a viúva D. Elvira e vende por uma bagatela o piano, seu companheiro de tempos mais felizes. Era preciso pagar aos fornecedores e o trabalho, dia e noite, não dava o suficiente para viver! Saíra o ignóbil (ilegível) e D. Elvira, como para despedir-se do velho amigo e companheiro preludia uma frase de Chopin, mas os soluços sacodem-lhe o corpo que cai sobre o teclado. Entra Ilda, sua filha única, tanto (ilegível) adorada porque sua mãe a disputara à morte, por vezes, com um heroísmo de alma forte. Ilda percebe-lhe as lágrimas, enxuga-as e faz-lhe as suas confidências. Chegara o momento em que era preciso romper o silêncio que guardava há meses, por timidez; numa ingênua confusão conta que em casa de umas alunas, belas e ricas, encontrara Gustavo, Engenheiro, bem encarreirado na vida, que ela amava e de quem era amado. Ele deveria vir dentro de poucos instantes pedi-la em casamento. Gustavo chega, com efeito encontra só D. Elvira, e expõe-lhe as suas aspirações. D. Elvira responde-lhe com a nobreza de sentimentos de uma mãe que acima de tudo coloca a felicidade de sua filha; conta-lhe com uma lealdade mesclada a sua vida de pobreza, de sacrifícios, de trabalhos, quase que de miséria, mas faz sentir que tudo sofria pela felicidade da filha e que os seus olhos vigiariam a vida inteira, essa felicidade, como dois cães de fila. Que Gustavo aguardasse alguns dias a sua resposta... refletisse... esperasse...
Gustavo retira-se, Ilda aparece. Mãe e filha enlaçam num abraço as suas almas, os seus corações. Cai o pano.
2º ato. São passados doze anos, estamos em casa de Gustavo. O luxo, o conforto, a representação, indicam a prosperidade do engenheiro. D. Elvira cuida das flores. Entra Ilda e pede-lhe que se encarregue de diversas comissões suas na cidade – no dentista, no joalheiro, na modista, na Cavé, etc. D. Elvira procura ralhar docemente com a filha, estranhando-lhe a mudança de caráter, a frequência das enxaquecas, a demasiada preocupação com o seu corpo, a extrema faceirice. Naqueles ternos reparos percebe-se uma leve intenção repreensiva; Ilda tenta justificar-se, mas sua mãe, sem denunciar a mais leve suspeita contra sua filha, como a colocar-lhe diante dos olhos um espelho da alma, conta-lhe pela primeira vez o seu grande segredo. Esquecida pelo marido que a deixara em abandono, quando nasceu Ilda, um ano depois de casada, ela teve um grande, um imenso amor por um homem que parecia também amá-la com violenta paixão, mas resistiu a esse sentimento escudando-lhe no amor de sua filha, para quem vivia exclusivamente. Nunca disse, nem ouviu uma frase de amor desse homem, de cujas mãos guardava ainda a impressão deliciosa do contato. Ele partiu e nunca mais ela o viu, nem dele soube...
A confidência podia ser verdadeira, mas podia igualmente ser um recurso para falar ao coração e a alma da filha que, durante toda narrativa manifestara na fisionomia espanto como se lhe houvesse adivinhado o segredo. As palavras de D. Elvira revolucionaram o espírito de Ilda, que parecia aterrada, como se sua mãe lhe lesse dentro do coração. Ela consegue que D. Elvira saia para as suas incumbências e afasta habilmente todos os criados. Momentos antes um amigo viera procurar Gustavo e lhe revelara que já murmuravam lá fora dos amores de Ilda e de Manoel Ramires. Violento, impulsivo, arrebatado, Gustavo, que pouco antes falava alegremente dos seus amores libertinos, exalta-se em ímpetos de ciúme, mas o amigo consegue levá-lo consigo.
Ilda está absolutamente só em casa; nesse momento chega Ramires que ela mandara chamar por carta. Recebe-o profundamente comovida, falando-lhe da sua imensa paixão; ele, abalado, também comovido, censura-lhe a imprudência daquele encontro; era preciso que se separassem, ele ia partir dentro de poucos dias. No desespero dessa separação, quando se despediam, pela primeira vez se enlaçam num beijo, que Gustavo vê, pois chegara cautelosamente como para surpreender sua esposa. Ao passo que Ramires sai, Gustavo entra precipitadamente, crava um punhal no seio da esposa, que rola morta num divã como se estivesse adormecida, e sai como a perseguir Ramires.
Passam-se dois segundos apenas e D. Elvira entra pela porta do jardim, em passos lentos, calmamente. Acredita que a filha está adormecida e quando vem pé ante pé como a desperta-la com um beijo, vê o punhal e recua aterrorizada. Da garganta escapam-lhe sons roucos de horror e desespero. Cai o pano.
3º ato. Muitos amigos, em casa de Gustavo esperam-no do júri, onde acabava de ser absolvido. Todos o felicitam, com entusiasmo, o glorificam, como a um herói. Afinal ele fica só pela primeira vez em sua casa e como se lhe remordesse a consciência, está inquieto, agitado e a excitação aumenta até o desespero e ele arremessa-se sobre o divã. Quando ergue os olhos vê uma figura tétrica a encará-lo. Era D. Elvira trajando rigoroso luto, encanecida, faces cavadas, olhos fundos, sombrios; ele ouve-lhe a voz cavernosa a exprobar-lhe o crime nefando, a lembrar-lhe a frase do seu primeiro colóquio quando ela disse que, vigiaria a felicidade de sua filha como um cão de fila. Gustavo ergue-se como para po-la fora e ela enterra-lhe um punhal no peito e da janela grita para a rua que acabava de matar o homem que lhe assassinara a filha. Cai o pano.
Por muito pálido e talvez desconexo, este resumo não pôde dar ideia da peça, que compreende muitas personagens, quando apenas falamos de três, porque nelas reside o interesse dramático propriamente. Entretanto, fazendo por essa forma a exposição, foi nosso intuito mostrar desde logo que se não trata propriamente de uma ação dramática acompanhando as paixões, os sentimentos e o caráter das personagens no seu dinamismo psicológico. A peça consta principalmente de três quadros: nos dois últimos a ação já caminhava à revelia do espectador, para chegar à crise. É a essa crise que o espectador assiste, e ela atua-lhe sobre os nervos com o fato material, com o lance violento. A intriga, propriamente, sistema nervoso do organismo dramático, não existe na peça e a sua ausência de psicologia. Desejaríamos que o próprio desenvolvimento da ação trouxesse a explicação de certos fenômenos nas frases, nos diálogos, nos gestos, em todas as manifestações da índole, do temperamento e do caráter e estávamos convencidos de que seria assim ao vermos a cena em que Gustavo pede Ilda em casamento; dessa cena deveria decorrer naturalmente a ação, justificando-se na lógica impecável da psicologia, mas assim não foi, e só presenciamos fatos até a conclusão, com prejuízo dos caracteres, da psicologia e da eterna humanidade.
Vamos particularizar.
Já dissemos que a peça começava com uma cena de justa observação, meticulosa e pormenorizada. Logo depois travamos conhecimento com D. Elvira, belíssimo tipo de mãe, encarnação sublime do amor e do sacrifício absoluto, figura digna do talento da autora. Insinua-se igualmente na simpatia do espectador a figura de Ilda, a formosa professora, jovem, pobre, profundamente honesta, que se não poupa ao trabalho para auxiliar, com o seu modesto contingente, as despesas da casa. E todo o primeiro ato decorre suavemente, com umas cenas de simplicidade, de ligeira emoção, realçando-se, na resposta de D. Elvira a Gustavo, a ideia elevada do amor de mãe. É um ato de fina comédia.
No segundo ato, passados doze anos, D. Elvira conserva certa preeminência como tipo bem estudado, mas as outras figuras (ilegível) do caráter que apresentavam. Gustavo, não se sabe porque, esqueceu a mulher e entregou-se a conquistas amorosas com o alvoroço de um rapaz leviano – dizem as outras personagens; nós o vemos apenas na transição brusca da futilidade e da indiferença pela esposa para o mais violento ciúme que o transtorna, o arrebata e o leva ao assassinato de Ilda dentro de poucos momentos. Nada, entretanto, justifica na peça essas alterações do engenheiro.
Que foi feita da modéstia de Ilda, filha dedicada, apaixonada pelo seu primeiro namorado, com o caráter bem formado no infortúnio pelo trabalho, pelo exemplo das virtudes de sua mãe? Encontramo-la no segundo ato garrida, faceira, hipócrita, destituída de senso moral, surda à voz da consciência, quando sua mãe lhe aconselha a honestidade e a virtude e obedecendo como escrava às sugestões do instinto animal. Onde a explicação desse novo modo de ser da esposa de Gustavo? Onde a intriga que nos permitisse acompanhar essa mulher na trilha tortuosa por que enveredara? O espectador no segundo ato percebe que não era a Ilda do primeiro a mesma mulher que se oferece cínica aos ardores de Ramires, mas ignora como se transformara a figura que o emocionara antes. Naturalmente, para reconhecer na apaixonada de Ramires a pobre e bela professora do primeiro ato, ele quisera saber quanto ocorrera de tal sorte grave, que modificasse fundamentalmente aquele caráter. Sem a intriga, ou antes, sem o enredo, sem a combinação de circunstâncias e de incidentes que o (ilegível) entrasse na psicologia de Ilda, como compreender?
No segundo ato surge Fausto, dizendo-se amigo de Gustavo e denunciando-lhe os boatos deprimentes da honestidade de Ilda. Porque não se preparou convenientemente o aparecimento de uma figura que nas primeiras palavras assume tamanha importância na ação? Porque o não apresentaram desde o primeiro ato, com a intimidade que o autorizasse a semelhante atitude?
Há sem dúvida belezas incontestáveis na peça de D. Julia. Sem falarmos da linguagem que tem a necessária fluidez nos diálogos, e a forma castiça desse escrito laureado; sem insistirmos nessa ideia alevantada e superiormente personificada do amor materno, vigilante, cioso até a ferocidade e vingativo, devemos mencionar aquela admirável antítese entre D. Elvira e Angela. Tanto aquela se desenhava altiva e nobre quanto esta se exibia ridícula e fútil na sua loquacidade inesgotável, na sua superficialidade mesquinha, na sua volubilidade caricata. Das outras figuras, apenas duas revelaram certo caráter, de modo a despertar interesse – a do Antenor, cativado por um gesto amável de Ilda e de Sophia. Com que felicidade a autora numa frase de três palavras apenas, deu-nos a psicologia inteira dessa rapariga! Sophia lê uns versos de Camões e ao terminar diz como por demais: “Não é feio!” Quanta futilidade revelou aquela rapariga nesse comentário indulgente!
Falemos da representação dizendo que ela agradou, confirmando as esperanças de que do modesto elenco do Sr. Eduardo Victorino pode nascer o teatro nacional.
Certo, não diremos que foram irrepreensíveis, admiráveis, os artistas, há tão pouco reunidos em conjunto, há por longo tempo desabituados de realizações artísticas, mas fazemos justiça reconhecendo-lhes no esforço inteligente um resultado superior ao que se deveria esperar num cometimento tão apressado.
O êxito da representação dá a medida do valor, da competência e da atividade do Sr. Eduardo Victorino, formando o ambiente e ensaiando a companhia.
As Sras. Maria Falcão e Lucilia Peres criaram com fino tato as duas figuras principais – D. Elvira, personificação admirável do amor de mãe, abnegado e sublime; Ilda, a jovem e bela professora, filha extremosa e depois a vítima de uma paixão louca, absorvente. Luiza de Oliveira foi de rara felicidade na tagarelice de Angela, que fez rir por vezes o auditório. Em pequenos papéis citemos Gabriela Montani, Corina Fróes, Fulvia Castelo Branco, Desdemona Barros, Judith Saldanha e Brasilia Lazaro que no 3º ato cantou com faceirice um mimoso trecho musical de A. Nepomuceno.
Dos atores cumpre mencionar Ferreira de Souza, sempre digno de apreço nas suas personagens, João Barbosa, muito correto no seu papel, Ramos num papel bem acomodado ao seu temperamento – o do Engenheiro Gustavo Ribas, Alvaro Costa um tanto frio na cena única de Manoel Ramires, Otavio Rangel, de muito caráter e pitoresco no adelo Beirão, Samuel Rosalvo, Afonso, Melo e Castelo Branco.
Os cenários muito bem pintados – talvez com demasiada fantasia o do segundo ato -; este de Angelo Lazary, os outros de Jayme Silva e Joaquim Santos.
Quiséramos falar ainda da impropriedade do título da peça, mas falta-nos tempo. Diremos algo, de outra feita, modificando talvez algum conceito menos seguro a que a precipitação de última hora tenha dado causa.
O público acolheu a peça e os artistas com particular simpatia, aplaudindo a autora e os seus interpretes e chamando-os à cena por vezes, no final dos atos. No final do 2º ato, principalmente, o público festejou calorosamente D. Julia Lopes de Almeida, os artistas e muitas vozes chamavam também o Sr. Eduardo Victorino.
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