PAIZ –
2/10/1912
Quem não
perdoa...
Não se alarmem aqueles que sonham com o
ressurgimento do teatro nacional, ao lado de uma literatura dramática, com o
fato de não terem encontrado ontem, no Teatro Municipal, uma companhia igual
àquelas que aqui dirigia Furtado Coelho; nem tampouco desanimem os que
acreditavam na força produtiva dos nossos literatos, tendo, para início da
temporada oficial, a tragédia em prosa de Julia de Almeida.
O que se fez ontem e o que se vai fazer durante
dois meses é uma simples experiência, uma louvável tentativa de galvanismo.
Quando todos os jornais desta capital discutiam
esses assuntos, que se prendiam à necessidade de termos teatro nosso,
declaramos aqui, nestas colunas, com a nossa habitual e rude franqueza, que não
tínhamos atores, nem dramaturgos, nem cenógrafos, e podemos acrescentar que o
grupo forte de inteligentes críticos teatrais, que os temos como poucas
cidades, de honestidade, proverbial na Europa e no Rio da Prata, rapazes que se
esforçam quando há verdadeiras ocasiões de exercer essa delicada função – os
críticos teatrais, dizíamos, desaparecem diante das produções nacionais,
medrosos das tolas suscetibilidades de autores presunçosos, que se iludem
criando um corrilho de elogios mútuos, e que repelem a análise crítica de quem
quer que seja, por isso que se julgam intangíveis modelos de uma arte nova,
elevada e genial.
É característico o fato que se deu conosco, ao
apresentarmos duas peças – a Aurora e
a Ave Maria.
No primeiro caso, foi preciso um verdadeiro
desafio, excitando o amor próprio dos críticos, ofendendo-os mesmo, com uma
espécie de bravata, para que todos
eles se compenetrassem do verdadeiro dever de sua missão, e não nos tecessem
elogios por simples coleguismo; quanto à segunda produção, o fato é recente:
pedimos toda a franqueza na manifestação do juízo da imprensa, declarando que
desejávamos crítica severa e não favores, para que se julgasse ao mesmo tempo
não só o merecimento da peça, como também o critério da celebérrima comissão da
Academia Brasileira, tão leviana na sua repulsa unânime de um trabalho que
podia competir com os escolhidos naquele cenáculo, em que não podia deixar de
haver um Judas.
A crítica trabalhou com desafogo, com independência,
porque sabia que era esse o nosso desejo; mas, para estímulo e para a
realização do ressurgimento que se almeja, seria preciso que essa crítica
continuasse pelo caminho que lhe traçáramos, animando, ensinando, expurgando e
excitando, mas é justamente isso o que vai falhar, dando como resultado
infalível a bancarrota da tentativa e desde então, diante do naufrágio,
recuarão, com justo motivo, as assembléias legislativas, negando auxílios
pecuniários para novas experiências.
O autor, como qualquer outro artista, produtor ou
executor, não tem o direito de se revoltar contra a crítica, nem lhe deve
favores e muito menos agradecimentos, no caso de uma opinião favorável – assim
pensamos e assim procedemos – tanto que, quando recebemos dos nossos colegas as
suas opiniões, que muito nos lisonjearam, não agradecemos, como não saltaríamos
em polêmica, no caso contrário.
E, no entanto, o que já se deu, e que vamos narrar,
provará a má orientação dos nossos autores e de alguns críticos, que, de
antemão, entregam os pulsos às algemas desses mesmos corrilhos, desconhecendo o
mal que daí surgirá.
O autor Roberto Gomes, quando nos manifestamos a
respeito da sua peça em um ato, representada em 1910, saiu a campo, de lança em
riste, para defender a sua primeira tentativa, em lugar de aceitar os conselhos
de um velho experiente, que lhe apontava os defeitos dessa produção, que muito
ganharia com os retoques de um carpinteiro
teatral; mas o mestre genial não esteve por isso; queria que o crítico do Paiz entrasse no coro dos aplausos dos
seus amigos pessoais, aumentando o êxito de estima sem dar uma nota dissonante
nesse concerto de louvaminhas improdutivas.
Esse mesmo autor, por uma simples referência, aliás
elogiosa, à sua peça, em vésperas de representação, escreveu-nos uma carta aberta, com a insolência dos
garnisés que entram em terreno sem galo, e foi preciso soltar-lhe em cima um
cão de fila, mascarado em trocista, para obrigá-lo a cantar como galinha choca
e bater em retirada.
Já lemos, nas folhas que mais se interessam pelo
êxito da empresa municipal, coisas inauditas, como seja a afirmação de que,
para as novas peças nacionais, estão sendo preparadas cenografias como nunca vimos nossos teatros,
verdadeiras novidades, revoluções na arte, criações assombrosas – como se estivéssemos
acenando as enchentes para um espetáculo – tiro,
e esquecendo que esses exageros preparam uma desilusão no espírito das
plateias, que em tais casos esperam muito mais do que aquilo que se lhes podia
dar. Os críticos devem ter bem presente na memória a verdade de que são, por
sua vez, criticados pelo público que lê, compara e deduz, e, se é certo que é
facílimo enganar esse público, também é certo que só se o engana uma vez.
Esses mesmos jornais, pensando erradamente que
podem sugestionar o público, em lugar de deixar que se prepare uma agradável
surpresa, já gritaram que as peças que vão ser representadas são verdadeiras
produções geniais, com diálogos deliciosos e teatralidade rara, e que as
representações vão recordar os espetáculos de Sarah Bernhardt, da Duse, do
Rossi, do Novelli e do Guitry, e depois, quando lá estiver o público e não
encontrar as peças dos Dumas e Shakespeares brasileiros, nem vir no palco nem
as Sarahs, nem as Duses – desanimará e deixará a tentativa correr por conta
desses arautos e pregoeiros de mentirolas.
Com D. Julia Lopes deu-se um fato curiosíssimo. Em
um dos seus brilhantes artigos inseridos nesta folha, disse ela, um dia, que
nas letras não desejava ser julgada como senhora e sim como autor, como escritor, e assim devia ser; mas, baseados nessa declaração e
molestados por pessoa que lhe é cara, fizemos referências à sua peça
representada ontem, e também à produção de uma comédia, sem pés nem cabeça, de
sua extremosa irmã, D. Adelina Lopes Vieira, e o resultado foi a revolta de D.
Julia Lopes, retirando a sua interessante colaboração desta folha, para não
estar ao lado de um redator que tivera a pouca delicadeza de tratá-la como autor e não como senhora, e que se
intrometera na sua família, criticando o trabalho de sua cara irmã,
esquecendo-se, sem dúvida, que as senhoras que não querem se sujeitar à rudeza
da crítica, não entram em concursos literários, saindo vitoriosas por empenho,
para serem depois repudiadas pelos empresários.
Estamos, portanto, diante de um fato curioso: - o
prefeito do Distrito Federal submeteu ao juízo de uma comissão da Academia de
Letras os originais que deviam ser representados no teatro Municipal; essa
comissão fez a sua escolha e arvorou em obra de arte a comédia A expiação, de D. Adelina Lopes, e no
fim de contas o empresário Eduardo Victorino, censor da aludida comissão,
esconde a sua gargalhada, que significa simplesmente a frase – Isto não é sério, e não representa a
peça, deixando-nos na impossibilidade de justificar o nosso juízo.
Era necessário esse histórico que aí deixamos,
fotografando as idéias daqueles que pretendem reerguer a arte dramática no
Brasil, começando pela revolta contra a crítica e enchendo de empáfias vaidosas
os seus balões, que não devem ser alvejados por aqueles que não fazem parte do
corrilho.
O nosso caminho não está traçado e a nossa crítica
será exercida com toda a justiça, realçando o que for bom, apontando os
defeitos e procurando ser útil não só aos auditórios, dando-lhes boa
orientação, como guiando, centro dos limites de nossas pequenas forças e
consciência, os autores e atores.
Se erramos – ao menos estará salva a boa vontade.
Vejamos agora (e já era tempo) o resultado da
representação da tragédia – Quem não
perdoa... original de Julia Lopes.
Convém notar, antes de tudo, a terrível
coincidência da representação da Quem não
perdoa... com o dia da absolvição do Dr. Mendes Tavares.
Na peça em questão a tese é o direito de punir o
impune, de modo que, falhando a justiça legal, intervenha a justiça pessoal,
teoria perigosa, ainda que bem defendida por filósofos de nomeada nos meios
socialistas e anárquicos.
Se o teatro fosse uma escola, como pretendiam os
antigos (e no caso presente uma escola de direito criminal), e se
impressionasse fóra do círculo estético de uma ação fugaz, fazendo propaganda
de suas teorias, veríamos agora os parentes próximos do comandante Lopes da
Cruz promovendo a justiça que falhou no tribunal popular e levando a sua
sentença além das penas estabelecidas no nosso código, que aboliu a pena de
morte.
O drama, sendo, pois, humano e verdadeiro, é, no
entanto, imoral em face da filosofia do direito; subversivo perante o
Evangelho, e nocivo às sociedades em via de formação, porque, em vez de
profligar a desmoralização do júri, indica um caminho perigoso, errado, e mais
criminoso do que a falta de pudor dos juízes que negam a afirmação das
testemunhas e que chegariam, se tanto fosse necessário, aos interesses
inconfessáveis, a negar a existência de um assassinato que tão fortemente impressionara
a população desta capital, justamente como na peça.
Ora, desde que acusamos o drama, taxando-o de
imoral, claro está que não podemos aplaudir uma obra de arte que traz em seu
bojo a repugnante e insustentável lei de Talião.
Vejamos, porém, a urdidura da tragédia com o fim de
avaliar o conhecimento que o autor
tem ou deveria ter do teatro representativo.
Se a peça fosse uma burleta ou uma comédia de
costumes, o 1º ato estaria bem traçado: mas ligado aos dois últimos torna-se um
disparate, mormente desde que entra em cena o Dr. Gustavo, que vai pela
primeira vez à casa da viúva D. Elvira, para pedir-lhe a mão de sua filha Ilda.
Pois o diabo da velha começa a dar à língua, com
corda para quinze dias, e conta ao pretendente que é ela quem lava as panelas e
varre a casa, e que é pobre, tanto que tem transações com os belchiores, e que
sua filha nasceu azarada, desfiando um rosário de desgraças, de febres
palustres, tombos de árvores, banhos de mar à força, esquecendo-se com certeza
de que a pobrezinha fora também mordida por um cachorrinho de estimação e
levara uma chifrada da cabra que ajudara a sua amamentação.
Um horror!
Na vida real, se aquele fato se desse com um
engenheiro, o homem desconfiado diria: - Minha senhora! Caso-me com a sua
filha, com a condição de, no dia seguinte, V. Ex. recolher-se à casa de saúde
do Dr. Eiras.
É um ato pesadamente arrastado, formando o prólogo
do drama que se vai desenrolar.
Reconhecemos, no entanto, que o tipo do belchior
Beirão é bem traçado; mas infelizmente trata-se de um personagem episódico, que
desaparece desde que completa a sua missão de esticar o ato.
Realiza-se o casamento e passam-se alguns anos, até
que chegamos ao 2º ato, dando lugar à apresentação de dois tipos bem
observados, a tagarela e velhusca namoradeira D. Angela, e o negociante falido
Vieira; no entanto, causa surpresa o diálogo entre a mãe extremosa e cheia de virtudes com a querida filha que ela salvara
de croupp e de desastres, aconselhando à filha a ser discreta e reservada nas
suas infidelidades!!
Pois, apesar da boa conselheira, a pequena deixa-se
apanhar num beijo com o amante e leva por isso uma facada e morre.
Essa cena está mal preparada e cheia de situações
falsas, impossíveis e contraditórias.
Aquele amigo que vem lançar a discórdia no casal é
o que há de mais ridiculamente arquitetado, e a cena do marido rancoroso com a
notícia da infidelidade da esposa, longe de impressionar a plateia, provocou
uma risada com a frase – Até logo.
Essa foi a crítica da plateia, que, rindo numa cena
altamente dramática, traça o seu veredictum
e desde então não há nada que seja capaz de
levantar a peça, que, ainda assim e apesar do ridículo, ainda foi reanimada
pela cena muda desempenhada pela atriz Maria Falcão.
O público foi benévolo e, depois de aplaudir os
artistas, aplaudiu também a autora, que os seus intérpretes tiveram a
generosidade de apresentar aos espectadores.
No 3º ato, o assassino volta do júri, absolvido por
unanimidade, e encontra em casa uma manifestação de apreço, havendo também uma
Lola, que esgoela uma canção, encaixada a martelo e escrita pelo diretor do
Instituto Nacional de Música. A retirada da Lola provocadora também fez rir, e
o caso era para isso.
Desaparecem os episódios e o drama vai continuar
com a aparição do remorso vivo. É a
viúva, que não sabemos por que, quiseram que fosse um cão (?) de fila, dando o
primeiro nome que teve a peça.
O remorso vivo transforma-se em Tosca: o júri
perdoou, mas a D. Elvira não está pelos autos e crava o punhal no peito do réu
absolvido.
E agora?
Tosca, em lugar de atirar-se das muralhas do
castelo, chega à janela e brada – Matei um homem.
E aí está a peça.
Como no final do 2º ato, os artistas ainda
trouxeram o autor ao proscênio,
dando-lhe os aplausos dirigidos à execução.
A atriz Maria Falcão fez tudo quanto era possível
para salvar-se do naufrágio que a inexperiência do autor preparara, e foi além do que esperávamos.
Mantiveram-se perfeitamente em seus papéis o ator
Ferreira de Souza e as Sras. Luiza de Oliveira e Lucília Peres, sendo muito
fraco o papel desta última, como insignificantes todos os outros, sem exceção,
motivo pelo qual o ator Ramos só conseguiu fazer rir em vez de impressionar.
Mas o caso não deve ser de desânimo para a
companhia. Trabalhem com animação, e quando aparecerem boas peças, como
esperamos, porque aí vêm os trabalhos de Roberto Gomes, de Paulo Barreto e
Carlos Góes, então o esforço dos artistas da atual companhia dramática será
recompensado pelo êxito real da colaboração, com a qual serão auxiliados os
autores.
O espetáculo de ontem serviu para provar que é
possível realizar a tentativa. Falharam os efeitos; a culpa, porém, não foi dos
artistas, mas unicamente da peça, apesar de todos os esforços para salvá-la da
queda que prevíramos ser inevitável.
A autora também não deve desanimar, ao contrário,
deve procurar com o seu grande talento reerguer o nome consagrado pela Herança e obter a desforra que merece.
Os cenários são bons e o do 2º ato ótimo, de grande
efeito, tendo havido boa marcação da peça, por parte do ensaiador, que é o Sr.
Eduardo Victorino.
Oscar
Guanabarino