PAIZ –
6/12/1912
O TEATRO
NACIONAL – O ENTUSIASMO DA PLATEIA – O DIA SEGUINTE: A CRÍTICA – AS REVISTINHAS
E O TEATRO SÉRIO – A MORAL NO TEATRO E NO CINEMATÓGRAFO – AS OUTRAS ARTES E O
TEATRO NO BRASIL.
Na noite de 1º do corrente o suntuoso palácio da
Municipalidade abriu as suas portas para uma nova tentativa de teatro nacional.
Tinha decorrido um longo período de profundo desânimo, durante o qual
vigorosamente floresceram as artes parasitárias do teatro. Os elementos que há
muitos anos vivem por aí aos trancos, como que de uma vez por todas se haviam
dispersado, aniquilados por todas as provações e sem piedade batidos por todos
os reveses. Um homem que a uma bela coragem alia a sua já agora indiscutível
competência, consegue reunir num elenco o que de melhor havia nesses elementos
e amparado pelos poderes do Distrito Federal se propõe a demonstrar que não era
uma utopia o teatro normal no Rio de Janeiro. Estava nessa prova pública uma
perigosa cartada a jogar. Ganhá-la seria uma dessas vitórias que caracterizam a
vida de um homem. Mas perde-la, seria arrastar na derrota as derradeiras
esperanças que porventura existissem nos elementos congregados para a decisiva
batalha.
Em tais condições, pode-se bem imaginar qual era o
estado d’alma das pessoas que sinceramente se interessam pelo nosso teatro e
que assistiram ao levantar do pano para a inauguração da temporada oficial.
A primeira impressão, diante de uma cena aberta, é
sempre uma indicação para o resultado definitivo, seja o êxito, seja o
insucesso. Nessa noite, a primeira impressão foi boa: a impressão definitiva
foi melhor. Quem enchia a plateia – e literalmente a enchia – era a assinalada
assembléia de damas e cavalheiros que no seu conjunto emprestam às principais
salas de espetáculo do Rio aquele aspecto de beleza e elegância que os
cronistas mundanos habitualmente denominam de solene e que nas grandes recitas
do sempre augusto teatro Lírico, tradição viva da nossa sociedade, atinge a um
esplendor que se não deixou ainda usurpar.
Que significava essa excepcional concorrência da
nata da sociedade carioca a mais um esforço em favor do teatro brasileiro, da
qual ela quase sempre andou arredia? Significava boa vontade, curiosidade,
interesse, simpatia? Tudo isso, evidentemente. Esse lisonjeiro sintoma,
entretanto, vinha arriscar ainda mais a cartada.
Ao fechar-se o velário do primeiro ato da peça da
ilustre escritora D. Julia Lopes de Almeida a cartada estava ganha. Triunfara plenamente
a competência de Eduardo Victorino – o homem ousado e hábil que a inteligência
do infatigável Coelho Netto fôra buscar para dirigir a grande prova.
A conversa dos corredores confirmava o entusiasmo
da sala. Em todas as bocas era espontâneo o louvor para o ingente, para o
considerável esforço. O interesse da peça, a correção dos artistas, a
propriedade dos cenários, tudo isso, capaz de atrair o público, era elogiado
com abundância de coração. As ovações ao fim do terceiro ato do drama Quem não perdoa..., feitas estando toda
a gente de pé, coroaram generosamente a feliz experiência. A autora, os
artistas e o empresário recebiam desse modo uma justa homenagem.
A todas as pessoas que constituíram plateia tão
calorosa estava reservada na manhã seguinte, à leitura dos jornais, uma
desagradável surpresa: algumas das notícias críticas da festa estavam
simplesmente ferozes. Nelas tudo era arrasado sem piedade, a peça, o
desempenho, tudo. Tais críticas deviam ter dado aos leitores que não haviam
comparecido na véspera ao Municipal a impressão de um desastre completo. As
outras, porém, testemunhas da vitória e partes nos ardentes aplausos, elas
vieram trazer a certeza de uma clamorosa injustiça. Pois, que? Os jornais que
imprimem diariamente os mais francos elogios às mais pífias revistinhas de
cinematógrafos, reservam exatamente todo o seu rigor para um movimento honesto
de arte séria? Os jornais que acham encantadoras e esfuziantes de graça as coplas
das burletas servidas por sessões, que não medem adjetivos para classificar as
funções dos circos de cavalinhos, enrijam a férula da crítica somente quando um
grupo bem intencionado pensa em estabelecer o teatro nacional? Por que não
adotaram outros, por exemplo, o critério da modelar crítica do Jornal do Commercio?
Qual é a razão dessa intolerância, dessa má
vontade. É claro que se não deseja um laissez-aller
desairoso. Mas, o que se devia legitimamente esperar era uma atitude que
significasse interesse para um esforço de tanta responsabilidade e de tão clara
repercussão no futuro.
Fenômeno sem explicação plausível, o teatro tem
vivido no Brasil à custa de sacrifícios enormes e chegou a um ponto extremo de
miséria orgânica. Pregoeiros fúnebres anunciavam o seu irremediável
desaparecimento, a falta de dramaturgos e de interpretes. Pensa-se em soerguer
o moribundo. Um sopro de vida o anima. Em vez do pobre encontrar apoio nos
circunstantes, vê face a face uma fileira de punhos cerrados que o ameaçam e
uma teoria de bocas cerradas que lhe dizem: “Morre danado! Deverás morrer, pois
que, se vivesses, nós estaríamos desmoralizados. Temos dito que a tua
existência é impossível. A tua vida será a nossa vergonha. É exato que temos
tudo: poetas, romancistas, filósofos, críticos, pintores, escultores, músicos,
arquitetos. Gente de teatro é que não deveremos ter. Tem paciência! recebe mais
este ponta-pé e ... morre!”
Tão viva é a grita contra o ressurgimento do teatro
que se chega ao ponto de adulterar o pensamento de um autor para insinuar-se
que a sua peça, é um insulto à sociedade, à mulher brasileira! E, na mesma
semana em que isso se escreve, deixa-se, sem protesto, que os cinematógrafos
abram as suas portas, em dias de moda, para a exibição de fitas cujas situações
são de uma lascívia baixa e revoltante... Tão intenso é o desejo de asfixiar as
tentativas sérias de um teatro no Brasil, que se vai ao ponto de afirmar ser
impossível um drama social no teatro brasileiro, porque a nossa vida, a vida do
Rio de Janeiro, nunca viu esses casos pungentes!
Não se pode conceber má fé mais organizada. Deve-se
desanimar diante disso? Não, não e não. Por maiores que sejam as perversidades,
alguma coisa há de ficar desse esforço. E, sobretudo, o que deve estar sempre
presente nos que se empenham no movimento é a certeza inteligente de que não há
nada de mais certo do que a final normalidade do teatro no Brasil. Como todas
as coisas más, a situação de agora passará. Não há maior insensatez do que
supor alguém que o teatro é uma arte impossível para um dos povos mais inteligentes
do mundo.
Oscar
Lopes
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