CORREIO – 5/10/1912
UM TEATRO NACIONAL
Começou
a ser posto em execução o velho projeto de soerguimento do Teatro Nacional.
Abriu-se a season ansiosamente
esperada, precedida de retumbantes reclamos à yankee, com uma peça de intuitos sociais, finalmente escrita,
dizem, e assinada por uma senhora, o que de per si já devia constituir um
título de simpatia para a crítica a mais esmiuçadora e severa. Apesar desta
circunstância, a impressão da crítica foi-lhe francamente desfavorável; houve
quem atribuísse a culpa aos atores, que atiraram ao porão peça tão bem
apadrinhada; houve quem desse aos cenários e ao guarda-roupa a responsabilidade
da defaite; o ensaiador, o
contra-regra, o ponto, tiveram todos o seu quinhão de bode expiatório no
fracasso do drama de estreia; e houve até horribile
dictu! quem atribuísse a culpa à própria peça!
Ora,
ao nosso ver, ninguém é culpado; tal qual como no crime que há dias o
democrático tribunal do júri acabou de julgar.
A
peça caiu, falemos francamente, como cairão todas as que tentarem pôr nas
tábuas do Teatro Municipal, com pretensões a tragédia e alta comédia, peças a
tese, estudos psicológicos, etc.
Assim
como o protecionismo na vida econômica do país criou as indústrias artificiais
como a do fósforo, em que tudo é importado, desde o clorato de potássio até o
rótulo, assim na vida literária, intelectual, a feitura de peças de tal ordem
será sempre uma indústria de artifício e nunca uma criação de arte. Por ora,
pelo menos. Como na indústria dos pregos ou dos fósforos, para não nos
afastarmos do paralelo, vem tudo de fora na confecção dramatúrgica. Eis o
processo porque o autor, íamos dizer-lo o industrial, fabrica o seu drama em
cinco atos, com ou sem tese, destinado a demonstrar ao mundo que possuímos,
além do nosso café e da nossa borracha, o nosso
teatro, autenticamente brasileiro, nacional, indígena, como o sabiá e o Pão
de Açúcar.
Ele,
o autor, aproveitando o protecionismo que passou no Conselho, como na Câmara
passaria um projeto em defesa do toucinho mineiro, encomenda de Paris uma certa
dose de rafinement social, que a
nossa terra não produz, alguns tipos que joguem espada, alguns pintores que
façam vida boemia, grisettes que
sirvam de modelo aos referidos pintores, cidadãos ricos que vivam dos
rendimentos e dêem em seus palácios five
ó clocks e recepções, toda essa matéria prima de que há absoluta falta em
nossa incipiente semi-civilização; tudo isso recebe o autor, dos centros
europeus convenientemente embalado em volumes encapados de amarelo, a 3 fr. 50,
ou nos suplementos da Ilustração
francesa.
(ilegível)
assim dos (ilegível) e dos personagens ficam-lhe faltando apenas paixões que os
agitem, movimentem, criando situações dramáticas, profundamente emotivas,
fortes e intensas, que façam vibrar a sensibilidade do auditório e o tornem
interessado no desfecho da ação, com a pontinha de moral ou de ceticismo no fim
do último ato.
Novas
encomendas para a Europa; e aí vem de importação o adultério escandaloso entre
gente da alta linhagem, o fermento socialista, o problema religioso, os atritos
de raças, os preconceitos de classe, em suma, todo esse manancial emotivo já,
de resto, muito explorado pelos dramaturgos franceses, que vai agora servir
para a fatura da nossa “peça nacional”.
E
munido de todos os ingredientes, mete o escritor mãos à obra; como adubo
indígena, entram apenas a gramática e o talento, quando o autor os tenha
disponíveis.
Eis,
afinal, completa a obra de arte que vai, municipalmente subsidiada, atestar aos
coevos e aos posteros, que nos quoque
gens humus em literatura teatral.
E a
peça indígena sobe à cena, convenientemente ensaiada por um empresário
português, e é representada por artistas tão lusitanos como o empresário
ensaiador, e o saudoso Mondego.
É a
isto que se chama o teatro nacional.
A
peça caiu; era de prever. O público que lá foi, afrontando o luxo dos ônix e
alabastros, esperava encontrar, reproduzida por atores brasileiros, a vida
brasileira, com as suas paixões, as suas virtudes e vícios.
Não
os temos nós perfeitamente caracterizados, típicos, nacionais? Deixemos, então,
a mania do teatro nacional; pois se não possuímos uma vida nacional, como
pretender reproduzir no palco essa coisa insistente?
Em
vez do que esperava, o espectador vai de fato ouvir e ver uma salada de cenas
apanhadas aqui e ali, em comédias, em dramas e tragédias, em romances
franceses. Como na indústria do fósforo, tudo ali é matéria prima importada.
Que
concluir dessas considerações pessimistas que vimos fazendo sobre o nosso tão
sonhado teatro?
Apenas
isto: não temos autores, não temos atores, não temos “motivos” – para drama, a
alta comédia ou a tragédia nacional.
Por
ora, ao posso ver, só um teatro é possível entre nós: o teatro alegre, com a
opereta, a burleta, a revista. A revista, sim; podem corar à vontade os vestais
da arte pura.
Só a
revista e a burleta, expurgadas da pornografia de mau gosto, podem por ora
caracterizar os nossos costumes, reproduzir a nossa semi-civilização, dando
nome aos autores, dinheiro aos empresários e alegria ao público.
Enquanto
os dramas psicológicos morrem na segunda representação, diante da plateia do
Municipal, em paz e às moscas, o público irá enchendo os pequenos teatros, onde
a vida nacional é tratada com o ridículo que lhe é devido, onde os tipos
aparecem inconfundíveis na linha grotesca das caricaturas, para demorarem na
memória de toda uma geração, fixados nela pela brejeira melodia dos couplets e dos refrains.
Quem
porventura, esqueceu o
“Vidigal famoso
Mais
rancoroso do que um bicho mau”
E
quem não vê o nosso muito nacional espécime do “homem todo família”, que prega
moral e é familiar da roleta e das cocottes,
naquele semvergonhismo Rodrigues da Capital
Federal?
Eis
aí, para não citar outros, dois tipos nacionais perfeitamente definidos e
estudados.
Que
obra dramática séria se pode orgulhar entre nós de haver dissecado um tipo do
nosso meio, fixando-o assim, como o standart
de um certo agrupamento ou de uma dada época nacional?
Mas
poderão objetar, não somos nós, porventura, capazes das mesmas paixões humanas
que em todo mundo fornecem o tema da obra teatral?
Por
certo que sim; apenas – e sejam por isto os deuses louvados – a nossa índole
não permite os quinto atos das tragédias; o plumitivo que se abalançasse a
apanhar com a Kodak de sua observação um flagrante social, digamos, por
exemplo, uma tragédia passional, e a dramatizasse profundamente,
ibsenianamente, iria por fim cair, antes que o prêmio fosse outorgado à
virtude, na hilariante, na impagável, na amaxixada cena cômica do júri.
Imaginem,
o júri metido num fim de tragédia! Que achincalhamento para o teatro!
Não,
meus senhores, deixemo-nos de dramas e de tragédias; aproveitem-se os talentos,
as aptidões, que os temos de sobra, na edificação do nosso teatro, do teatro
que responde às necessidades do meio e do momento.
Ponhamos
a alma nacional em alegres e saltitantes revistas por sessões.
Bastos Tigre*
*Manuel Bastos Tigre (1882-1957) –
Formou-se engenheiro civil, era pernambucano, porém veio para o Rio de Janeiro
e tornou-se jornalista, humorista, poeta e teatrólogo. Escreveu dezenas de
Revistas, entre elas a mais famosa Maxixe.
Em parceria com Eduardo Victorino as Revistas Viva o amor! e Dito e feito.
VISITE TAMBÉM
Nenhum comentário:
Postar um comentário