GAZETA TEATRAL – 10/1912
ABERTURA
DA TEMPORADA OFICIAL – No municipal representa-se “Quem não perdoa”, para
estreia da companhia nacional.
-
Que tal?
-
Bem, muito bem.
- Ou
passável, apenas decente...
-
Não, muito bem mesmo. Sala repleta. Estavam lá o chefe do Estado, o ministro do
Interior, o general prefeito, mundo oficial. As frisas e os camarotes,
floridos; a plateia, com trajes custosos e peitilhos reluzentes. Houve chamados
à cena. Palmas, muitas palmas. Uma noite de gala.
- E
a peça, o desempenho?
Era
mais de meia-noite. Na redação, assaltados pelas perguntas, principiamos a
escrever estas linhas. Certo, uma das coisas que mais cooperarão para o ressurgimento
do nosso teatro há de ser, sem dúvida, a sinceridade da crítica.
Se
vamos para aí dizer que tudo está muito bom, que tudo é assim mesmo, que tudo
foi perfeitamente bem, então não temos nada feito, o resultado será
contraproducente.
Também
não devemos ir ao ponto de arrumar em cima das peças e dos autores e atores uma
crítica implacável, serrada, por demais severa: seria matar aspirações e
esmorecer vontades.
Nem
uma, nem outra coisa. Mas uma franca e leal apreciação, sem a mínima autoridade
pretensiosa, encarando apenas as coisas conforme se as observou e se as sentiu.
É
assim que pretendemos apreciar os originais brasileiros e a sua interpretação
na presente temporada.
***
De
teatro, da Sra. D. Julia Lopes de Almeida, um nome feito na nossa literatura,
conhecíamos apenas a sua peça “A Herança”, um pequeno ato, que, aliás, nos
deixara a mais viva impressão. Era, de resto, até o “Quem não perdoa”, a sua
única produção no gênero.
Há,
nesse único ato de que se compõe a peça, alguma coisa de forte, de
perfeitamente natural, de humano enfim, que, serenamente repassado de uma
branda emoção, nos chegara a empolgar, quando a vimos representada pela
companhia da Exposição.
Por
isso, aguçara-nos a curiosidade a nova peça da ilustre escritora.
- E
então?
-
Vejamos...
D.
Elvira, uma viúva, que com sua filha habita uma casa de real conforto, vê-se na
contingência dolorosa de ir vendendo os móveis para poder continuar a viver.
Ilda, sua filha, que é boa, trabalha para ajudá-la.
Um
dia, após a mãe ter negociado com o belchior Beirão a mobília e o piano, entra
a filha um tanto alvoroçada, participando à mãe que tem alguma coisa a
dizer-lhe. Uma sua amiga, que chega, participa-lhe, que conseguiu para Ilda
mais duas alunas. D. Elvira, ao sair Sophia, conta à filha que já sabe o seu
segredo e que não consente em tal. Já são demais as alunas que tem.
Mas...
como a hora se aproxima, Ilda é então forçada a confessar, dizendo à sua mãe
que dentro em poucos minutos um moço virá pedi-la em casamento. Admiração de D.
Elvira. Ilda conhecera-o em casa de umas alunas suas. E amara-o.
O
Dr. Gustavo Ribas, engenheiro de futuro numa casa de eletricidade e com
herança, é recebido por D. Elvira, que lhe conta logo a vida toda e as
dificuldades de seu lar, aconselhando-o a pensar bem, a refletir muito. Gustavo
sai e Ilda que, naturalmente estava à espreita, entra e cai nos braços de sua mãe.
No
segundo ato, em casa de Ilda, há doze anos casada com Gustavo, sua mãe consegue
dela o juramento de que se ela chegar a amar outro homem, que não o seu marido,
se sacrificará, mantendo pura a sua união com Gustavo. E conta que ela se havia
também sacrificado. Vão chegando visitas – um casal tios do marido de Ilda; um
amigo da casa, o Sr. Fausto; um empregado de Gustavo... Sabemos então que o
marido de Ilda tem uma amante, a mulher do capitão Elias. As visitas saem, saem
assim como a D. Elvira, que vai fazer umas compras, a pedido da filha e tomar
chá, por ela, na Cavé.
Ao
retirar-se Ilda para o interior, Fausto, que ficara, conta a Gustavo que lhe
disseram estar o Sr. Ramires apaixonado pela sua mulher. Gustavo que é um
impetuoso – todos o dizem – pensa logo que sua mulher tem um amante. fausto
tranquiliza-o e fa-lo retirar-se com o fito de conseguir o meio de se mandar
Ilda para uma fazenda, passar algum tempo, pois o Dr. Ramires vai como cônsul
para a Europa.
Mal
eles saem Ilda despacha os criados em serviços demorados. É a hora da
entrevista, a primeira e a única. Ramires chega. declarações de amor. Ela já
sabe que ele vai partir. mandou chamá-lo para a despedida.
No
momento de trocarem o beijo, chega o marido. Desvairado mata a mulher. Corre em
procura de Ramires, que saíra, por uma outra porta, porque a casa tem duas
entradas. Nisso a mãe de Ilda chega da cidade. Entra despreocupadamente. A
filha já estava morta.
No
dia do júri de Gustavo – é o terceiro ato – os tios, em casa dele, preparam a
recepção. Certo, virá alguém. Chegam umas vizinhas, alguns amigos e por fim,
Gustavo com o advogado e íntimos. Há música, canto, discursos, champagne.
Gustavo sente-se aborrecido. Os visitantes saem. E ele fica só. Nesse momento,
chega a mãe de Ilda. Atira-lhe ao rosto todas as dores que sente e, como mãe, é
“quem não perdoa”, mata-o... É só.
Ora,
tudo isso pode bem ser que se dê, ou que se tenha mesmo dado. Apenas a maneira
por que a ilustre escritora, cujo nome estrelejado somos os primeiros a
respeitar, pôs todos esses fatos em cena, é que nos pareceu um tanto
artificial, urdidos como estão, ao nosso ver, de um modo pouco espontâneo,
pouco verossímil.
Achamos
mais que a ação, aqui e ali, arrasta-se e não consegue manter ileso no espírito
do espectador o fio emocional.
Tirando
a cena com o belchior, que é natural, as de mãe e filha, antes e depois da
visita de Sophia, que são ainda bem feitas, logo no primeiro ato sente-se como
se quebrar todo o interesse que se apodera de nós pela ação, ao ver D. Elvira,
recebendo em sua casa um homem que vem pedir a mão de sua filha, desenrolar o
interminável rosário das suas contrariedades...
Certo,
isso, além de um tanto inverossímil, numa primeira visita dessas, tratando-se
como se trata de uma pessoa que tivera o conforto da alta roda, desvia a
atenção do espectador, porque o diálogo é um tanto sem vida, quase que incolor
mesmo. É que Gustavo quase não balbucia uma palavra, limitando-se a ouvir,
apenas...
Depois,
para nós, todo esse primeiro ato é uma série de cenas inteiramente inúteis para
a ação da peça, digamos melhor, do drama.
É
simples. Uma vez que o segundo ato começa 10 anos após, era o suficiente que
nessa ocasião, em cenas em que se definissem os tipos principais da ação e a
razão de ser de cada um, no ambiente onde iam viver, se deixasse transparecer o
passado do casal, em que condições se haviam consorciado. Gustavo e Ilda – que
é para quanto serve o primeiro ato.
Desse
defeito, da pouca razão de ser do primeiro ato, decorre todo o desenrolar
fictício do segundo, em que o artifício, o preparado das cenas principais
revela-se, simultaneamente. Aí sentimos nós que cada entrada de um tipo novo em
cena, era o atestado frisante do nosso modo de pensar.
Primeiro,
a cena com os tios de Gustavo, que não deixa de dar uma certa vivacidade ao
ato, não define bem o caráter desses personagens.
Assim,
Fausto, que o espectador ainda não conhecia, entra naquele meio unicamente para
dizer a Gustavo que a sua mulher é amada pelo Dr. Ramires. É evidentemente
forçada aquela aparição assim de um tipo que não se conhecia, muito embora se
diga amigo. Como é ainda forçada a vinda de Ramires, de quem apenas se falara.
A
nós, ao menos nos pareceram forçadas; mas se não são forçadas, são ao menos
preparadas, não há nelas uma espontaneidade, visivelmente decorrente da marcha
dos fatos.
Quem
poderia dizer que Fausto tinha direito àquilo que praticou, quem poderia supor
que Ilda e Ramires mantinham relações naquele ponto. Bernstein faz, pode-se
dizer o teatro dos imprevistos. Mas fa-lo com lógica, com consequências
naturalmente explicáveis.
Convenhamos
que, muito embora o teatro social seja o reflexo da vida, na urdidura da peça,
e por esse reflexo mesmo jamais deve deixar de transparecer o estudo dos
personagens. Não é só o desenrolar dos fatos, o chamado enredo, que deve
preocupar o autor. Ao contrário, acima dele está o desenho dos tipos, para que
nós cá fora possamos acreditar, mais ainda entrar na realidade da ação.
Depois,
aquela morte final em cena, impossível de se dar como está na peça, a não ser
que Ilda morra sem gritar, o que é muito raro para quem leva uma facada. Mas se
Ilda gritar, D. Elvira não poderá entrar assim distraída como entra. Seria mais
lógico e mais elegante que Ilda fugisse. Lá dentro então o marido detonaria o
revolver e o pano caia.
No
terceiro ato, não só não nos agrada a cena final, porque não podemos admitir
que um indivíduo impetuoso ouça, depois de ter sido julgado inocente, todos os
desabafos, um tanto fortes, da mãe de Ilda, que acaba matando-o, como ainda
julgamos as outras cenas um tanto feitas para recheio do ato.
- E
o desempenho?
- Os
artistas da Companhia Nacional fizeram um esforço verdadeiramente brilhante. É
uma verdade que se impõe. Todos os papéis estavam polidos, limpos e estudados.
E isso é de notar, tanto mais que o espaço de tempo foi curto e eles se acham
sobrecarregados com os papéis das outras peças.
Maria
Falcão soube manter uma linha correta e nos dois momentos em que temíamos algum
deslize na sua interpretação, ao encontrar a filha morta e ao matar o seu
marido.
Pode-se
dizer, sem exagero, que ela viveu o papel de D. Elvira.
Lucilia
Peres, ao seu lado, esteve bem na Ilda: em todo o primeiro ato e no segundo, na
cena com sua mãe e na cena da entrevista com o apaixonado, ela deu relevo ao
seu papel, tendo entradas e saídas de efeito.
Jacintho
foi feito com propriedade, por Ferreira de Souza, que é ainda e sempre o mesmo,
correto, natural, sóbrio. Fez sua mulher Luiza de Oliveira, e com muito acerto,
provocando risos, como era do papel...
O
marido de Ilda, o Dr. Gustavo Ribas, esteve nas mãos de Antonio ramos, que se
por vezes tem fogo demais, por outras é frio em excesso, como foi na cena do
pedido de casamento. Contudo, não se comprometeu.
João
Barbosa, numa ponta, o Sr. Fausto, manteve-se bem.
Ramires,
o galã, a cargo de Alvaro Costa, pareceu-nos um pouco contrafeito. No entanto,
o Sr. Alvaro Costa é elegante, tem uma boa voz e é capaz dar brilho a papel
mais definido. Ontem sentimos isso.
Dois
papéis que nos parecem os mais bem apanhados da peça, o belchior Beirão e o
empregado de cartório, o Sr. Cardoso, foram com muita propriedade encarnados
pelos atores Octavio Rangel e Carlos Abreu.
Cooperaram
para o desenvolvimento da ação, nos demais papéis, os artistas Gabriella Montam,
Corina Fróes, Fulvia Castello Branco, Desdemona Barros, Judith Saldanha,
Brasilia Lazaro, Samuel Rosalvos, Affonso Mello e Castello Brando.
A
“mise-en-scéne” é, sem dúvida, das mais brilhantes que temos tido. Pintou a
sala elegante do primeiro ato, com o papel já desbotado, o cenógrafo Jayme
Silva; o segundo, que é uma sala de um belo efeito, com o seu terraço ao fundo,
dando para o jardim, Angelo Lazary
Achamo-la
apenas alguma coisa baixa.
O
terceiro ato é de Joaquim Santos.
O
mobiliário e o guarda-roupa, respeitaram as exigências da peça.
Era
bem.
Depois,
foi uma noite de festa e de glória para o nome de Julia Lopes. No final do
segundo ato, a ilustre escritora patrícia obteve uma calorosa ovação da
assistência, em pé, que enchia o teatro todo. E o palco foi invadido por homens
de letras, jornalistas, senhoras, que foram levar as felicitações à distinta
escritora, merecedora, pelo seu passado de conquistas nas letras, de todas
essas homenagens.
Abbadie
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