CORREIO DA MANHÃ – 30/09/1912
Primeiras: Estreia no Municipal a Companhia
Nacional
“Quem não Perdoa”, drama em 3 atos, de D. Julia
Lopes de Almeida
A empresa
subvencionada Eduardo Victorino deu-nos ontem, no Teatro Municipal, o primeiro
espetáculo da série em que ali far-se-ão representar dramas de escritores
nacionais.
A premiére coube ao drama inédito em três
atos da sra. d. Julia Lopes de Almeida, intitulado Quem não Perdoa, e aplaudido por uma numerosa assistência que
enchia as cadeiras, as frisas, os camarotes, os balcões e galerias...
Encarregou-se
do melhor desempenho do trabalho dessa escritora uma troupe de artistas esforçados que se nos apresentam como elementos
capazes de organizar o que se chama propriamente o teatro nacional.
Sobre o
palco, dizendo, respectivamente os seus papéis nos diferentes atos, figuras
conhecidas do nosso meio crítico se movimentaram...
Ferreira de
Souza, Maria Falcão, Luiza de Oliveira, Carlos Abreu, Antonio Ramos faziam a
primeira investida para o levantamento da arte indígena...
A peça
escolhida em primeiro lugar é uma história complicada de adultérios e sutilezas
psicológicas a que não faltaram alguns assassinatos e uma absolvição do júri
popular.
Elvira, uma viúva abandonada, vive com a sua
filha única, Ilda, a quem dedica o
resto de sua existência, carinhosa e severa, velando constantemente pela
felicidade do precioso rebento...
Em extrema
pobreza, assiste no começo do 1º ato a usura dos compradores oferecerem preços
pelos móveis de mais valor que ainda lhe restam e que, naquele transe
amargurado, recordam aos seus olhos os felizes dias de conforto que se foram
para não mais voltar.
Em seguida,
é um pedido de casamento, partido
vantajoso que oferece um engenheiro em condições (Gustavo Ribas), que propõe a Elvira
receber Ilda como sua esposa. Elvira faz-lhe sentir a imensidade do
seu amor materno, a vigilância sem tréguas que mantém sobre a inocente, e tenta
mesmo fazer um resumo biográfico de toda a história da família.
Tudo isto
dito em diálogos enormes, que não raro deixaram o paciente engenheiro num longo
e penoso mutismo vexatório.
No 2º ato, Ilda está casada. Recebe a visita amiga
dos tios de Gustavo, que tagarelam a
valer sobre pequenas coisas fúteis, até se despedirem.
Ilda e sua mãe ficam a sós. Então,
aproveitando-se da oportunidade, trocam algumas confidências interessantes, em
que Elvira, depois de lhe desvendar à
sua filha o segredo até então oculto de um amor ilícito que tivera, acaba por
aconselhar à Ilda que, se algum dia tiver um amante, nunca deixe
chegar ao conhecimento do marido.
Por essa
altura, Gustavo tem notícias de algumas
leviandades da sua esposa por denúncia confiante do seu amigo Fausto. De fato, o trágico engenheiro é
enganado por Manoel Ramires, um amigo
companheiro a quem Ilda não é
indiferente.
A
princípio, vacila, não quer acreditar no que acaba de ouvir e sai de braço
enfiado com o denunciante para apurar a verdade do que se está passando.
Deserto o
palco, Ilda aparece e, por
simultâneas coincidências do acaso (sempre esta fatal aparição) despacha a
criadagem para vários pontos, a fim de, isolada, aguardar a despedida de
Ramires, que se vai para a Europa... desgostoso
da vida.
Chega e, ao
fitar a esposa de Gustavo, trava com
ela, durante alguns minutos, um desses terríveis colóquios mudos que só os
olhares sabem traduzir.
Ilda rompe o silêncio, começa uma declaração
de amor muito comovida, que Ramires
interrompe friamente, inflexível. Novo silêncio, novos olhares para finalmente
um cair nos braços do outro, numa efusão de beijos apaixonados...
À porta do
fundo, surge Gustavo, exclama uma
expressão de cólera e de dor, avança para o par amoroso e, enquanto Ramires foge covardemente, o esposo
traído vinga a sua desonra, apunhalando a mulher adúltera.
Primeiro
assassinato, seguido pouco depois por um desmaio da mãe de Ilda, que, aliás entrara calmamente nessa ocasião.
No 3º ato, Jacintho Vieira e sua consorte Angela, tios de Gustavo, aguardam na casa deste a sua chegada após a absolvição do júri,
que o inculpara do crime cometido.
Paira em
tudo um movimento de alegria. A vizinhança também concorre a essa festa de regozijo,
entre a qual vem uma espevitada moçoila, com prematuros instintos de seduzir o
viúvo.
Há música,
de Nepomuceno, canto, discursos e abraços afetuosos. Despedem-se para Gustavo ficar a sós.
Aqui, há um
curioso diálogo entre o engenheiro e um seu velho empregado, o Cardoso, encarnação da honra e do dever,
o único que não sorriu a felicidade daquela família e que, leal à bondade
inesquecida da finada, despede-se do patrão com um gesto soberano de desprezo.
Entra a
velha Elvira, sogra acima de mãe, que
vem lavrar o seu protesto, face a face, contra o perdão do júri complacente.
Fala, e as
suas palavras cavernosas não contêm a imensidade do seu ódio.
Gustavo recebe-a espavorido, não ousa lhe fitar
a indignação do seu olhar e, num esforço supremo, avança para a velha, que
neste momento o apunhala “com o mesmo
ferro vingador”.
Segundo e
último assassinato.
O pano
desce e a plateia aplaude com entusiasmo os interpretes, sendo a autora
festejada numa salva de palmas prolongadas.
***
Três tipos
repelentes de mulheres, a viúva, com seu passado duvidoso, e que aconselha a
filha a não dar a perceber ao marido a paixão que ela possa ter por outro
homem; a filha, que, aproveitando a ausência de todos de casa, se atira aos
braços do amante; a tia, senhora casada, e com uma página borrada no livro da
sua existência, a discutir com o velho apaixonado.
Dos três
tipos, dois, quando não completamente falsos, são de uma psicologia inverossímil:
mãe e filha. A primeira gabando-se de ser a vigilante carinhosa de sua filha,
não se detém em confessar-lhe um erro passado, e por contrapeso inocula naquela
alma cândida as artimanhas do adultério.
A segunda,
que casou por amor, só porque o marido volta ao lar por alta madrugada, dá trela
a um sujeito e afinal o recebe no próprio teto conjugal, e ali, surpreendida em
estreito amplexo com ele, cai sob o punhal assassino do esposo.
Depois do
terceiro ato, a sogra enfrenta com o genro, desanda num sermão apos trófico,
dizendo que ele lhe roubará o carinho da filha para matá-la. Então, que pretendia
tal dama? Que o genro, pondo os olhos sob aquela pouca vergonha, se retirasse
cautelosamente, para a cara metade beijar à vontade o seu amante? Ou que
exclamasse como o Rei Mark, ao ver a esposa perto de Tristão:
-
Desculpem, eu não sabia...
E isso tudo
pingando de pena de uma senhora brasileira, com pretensões a interpretar a
mulher brasileira. É forte...
As
situações são forçadas. Exemplo: a retirada inopinada de Gustavo, a retirada dos tios que eram visitas, a retirada da
progenitora, a retirada dos fâmulos, um para a costureira, outra para a
modista, tantos desaparecimentos simultâneos, para que? para darem lugar à
entrada por acaso do... queridinho
que ela não esperava.
Pois uma
mulher, por mais habituada a rasgar o código conjugal, recebe um homem
suspeito, cai-lhe nos braços sem receio de que o marido possa chegar de um
momento para outro?
Dicant Paduani!
O mexerico
de que o amigo Fausto dá notícia ao engenheiro acerca do procedimento da
mulher, é ficelle que serve
unicamente para tiradas declamatórias, a inutilidade de tais recursozinhos se
denuncia nas palavras de Fausto, que
acha o caso de pouca monta, porquanto Ramires,
ao dia seguinte tomaria o vapor para a Europa. Para que, pois, esse amigo
oficioso vem envenenar a existência do seu camarada, se daí a 24 horas tudo
estaria acabado?
O primeiro
ato se arrasta com diálogos longos, fatigantes. A velha, para gabar a ternura
que sempre sentiu pela filha, começa por contar ao futuro genro como a filha
nasceu e, ano por ano, como se fez a dentição, quando veio a coqueluche, e depois uma moléstia que a
levou quase às portas da morte. Chegando aos nove anos, a crônica materna fez
ponto, felizmente. Já não era sem tempo...
E a
conversa estirada remata com dramáticas afirmações, como prova cabal do grande,
imenso, incomensurável amor que os dois corações enlaçava.
O segundo
ato são reproduzidos quadros, esses, sim, verdadeiros da vida carioca: uma
mocinha canoramente desfrutável, um rapaz discursador, e outra jovem
namoradeira, que fareja no viúvo um bom partido.
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