quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Crítica de "Correio da Manhã"


CORREIO DA MANHÃ – 30/09/1912

Primeiras: Estreia no Municipal a Companhia Nacional
“Quem não Perdoa”, drama em 3 atos, de D. Julia Lopes de Almeida

A empresa subvencionada Eduardo Victorino deu-nos ontem, no Teatro Municipal, o primeiro espetáculo da série em que ali far-se-ão representar dramas de escritores nacionais.
A premiére coube ao drama inédito em três atos da sra. d. Julia Lopes de Almeida, intitulado Quem não Perdoa, e aplaudido por uma numerosa assistência que enchia as cadeiras, as frisas, os camarotes, os balcões e galerias...
Encarregou-se do melhor desempenho do trabalho dessa escritora uma troupe de artistas esforçados que se nos apresentam como elementos capazes de organizar o que se chama propriamente o teatro nacional.
Sobre o palco, dizendo, respectivamente os seus papéis nos diferentes atos, figuras conhecidas do nosso meio crítico se movimentaram...
Ferreira de Souza, Maria Falcão, Luiza de Oliveira, Carlos Abreu, Antonio Ramos faziam a primeira investida para o levantamento da arte indígena...
A peça escolhida em primeiro lugar é uma história complicada de adultérios e sutilezas psicológicas a que não faltaram alguns assassinatos e uma absolvição do júri popular.
Elvira, uma viúva abandonada, vive com a sua filha única, Ilda, a quem dedica o resto de sua existência, carinhosa e severa, velando constantemente pela felicidade do precioso rebento...
Em extrema pobreza, assiste no começo do 1º ato a usura dos compradores oferecerem preços pelos móveis de mais valor que ainda lhe restam e que, naquele transe amargurado, recordam aos seus olhos os felizes dias de conforto que se foram para não mais voltar.
Em seguida, é um pedido de casamento, partido vantajoso que oferece um engenheiro em condições (Gustavo Ribas), que propõe a Elvira receber Ilda como sua esposa. Elvira faz-lhe sentir a imensidade do seu amor materno, a vigilância sem tréguas que mantém sobre a inocente, e tenta mesmo fazer um resumo biográfico de toda a história da família.
Tudo isto dito em diálogos enormes, que não raro deixaram o paciente engenheiro num longo e penoso mutismo vexatório.
No 2º ato, Ilda está casada. Recebe a visita amiga dos tios de Gustavo, que tagarelam a valer sobre pequenas coisas fúteis, até se despedirem.
Ilda e sua mãe ficam a sós. Então, aproveitando-se da oportunidade, trocam algumas confidências interessantes, em que Elvira, depois de lhe desvendar à sua filha o segredo até então oculto de um amor ilícito que tivera, acaba por aconselhar à Ilda que, se algum dia tiver um amante, nunca deixe chegar ao conhecimento do marido.
Por essa altura, Gustavo tem notícias de algumas leviandades da sua esposa por denúncia confiante do seu amigo Fausto. De fato, o trágico engenheiro é enganado por Manoel Ramires, um amigo companheiro a quem Ilda não é indiferente.  
A princípio, vacila, não quer acreditar no que acaba de ouvir e sai de braço enfiado com o denunciante para apurar a verdade do que se está passando.
Deserto o palco, Ilda aparece e, por simultâneas coincidências do acaso (sempre esta fatal aparição) despacha a criadagem para vários pontos, a fim de, isolada, aguardar a despedida de
Ramires, que se vai para a Europa... desgostoso da vida.
Chega e, ao fitar a esposa de Gustavo, trava com ela, durante alguns minutos, um desses terríveis colóquios mudos que só os olhares sabem traduzir.
Ilda rompe o silêncio, começa uma declaração de amor muito comovida, que Ramires interrompe friamente, inflexível. Novo silêncio, novos olhares para finalmente um cair nos braços do outro, numa efusão de beijos apaixonados...
À porta do fundo, surge Gustavo, exclama uma expressão de cólera e de dor, avança para o par amoroso e, enquanto Ramires foge covardemente, o esposo traído vinga a sua desonra, apunhalando a mulher adúltera.
Primeiro assassinato, seguido pouco depois por um desmaio da mãe de Ilda, que, aliás entrara calmamente nessa ocasião.
No 3º ato, Jacintho Vieira e sua consorte Angela, tios de Gustavo, aguardam na casa deste a sua chegada após a absolvição do júri, que o inculpara do crime cometido.
Paira em tudo um movimento de alegria. A vizinhança também concorre a essa festa de regozijo, entre a qual vem uma espevitada moçoila, com prematuros instintos de seduzir o viúvo.
Há música, de Nepomuceno, canto, discursos e abraços afetuosos. Despedem-se para Gustavo ficar a sós.
Aqui, há um curioso diálogo entre o engenheiro e um seu velho empregado, o Cardoso, encarnação da honra e do dever, o único que não sorriu a felicidade daquela família e que, leal à bondade inesquecida da finada, despede-se do patrão com um gesto soberano de desprezo.
Entra a velha Elvira, sogra acima de mãe, que vem lavrar o seu protesto, face a face, contra o perdão do júri complacente.
Fala, e as suas palavras cavernosas não contêm a imensidade do seu ódio.
Gustavo recebe-a espavorido, não ousa lhe fitar a indignação do seu olhar e, num esforço supremo, avança para a velha, que neste momento o apunhala “com o mesmo ferro vingador”.
Segundo e último assassinato.
O pano desce e a plateia aplaude com entusiasmo os interpretes, sendo a autora festejada numa salva de palmas prolongadas.
***
Três tipos repelentes de mulheres, a viúva, com seu passado duvidoso, e que aconselha a filha a não dar a perceber ao marido a paixão que ela possa ter por outro homem; a filha, que, aproveitando a ausência de todos de casa, se atira aos braços do amante; a tia, senhora casada, e com uma página borrada no livro da sua existência, a discutir com o velho apaixonado.
Dos três tipos, dois, quando não completamente falsos, são de uma psicologia inverossímil: mãe e filha. A primeira gabando-se de ser a vigilante carinhosa de sua filha, não se detém em confessar-lhe um erro passado, e por contrapeso inocula naquela alma cândida as artimanhas do adultério.
A segunda, que casou por amor, só porque o marido volta ao lar por alta madrugada, dá trela a um sujeito e afinal o recebe no próprio teto conjugal, e ali, surpreendida em estreito amplexo com ele, cai sob o punhal assassino do esposo.
Depois do terceiro ato, a sogra enfrenta com o genro, desanda num sermão apos trófico, dizendo que ele lhe roubará o carinho da filha para matá-la. Então, que pretendia tal dama? Que o genro, pondo os olhos sob aquela pouca vergonha, se retirasse cautelosamente, para a cara metade beijar à vontade o seu amante? Ou que exclamasse como o Rei Mark, ao ver a esposa perto de Tristão:
- Desculpem, eu não sabia...
E isso tudo pingando de pena de uma senhora brasileira, com pretensões a interpretar a mulher brasileira. É forte...
As situações são forçadas. Exemplo: a retirada inopinada de Gustavo, a retirada dos tios que eram visitas, a retirada da progenitora, a retirada dos fâmulos, um para a costureira, outra para a modista, tantos desaparecimentos simultâneos, para que? para darem lugar à entrada por acaso do... queridinho que ela não esperava.
Pois uma mulher, por mais habituada a rasgar o código conjugal, recebe um homem suspeito, cai-lhe nos braços sem receio de que o marido possa chegar de um momento para outro?
Dicant Paduani!
O mexerico de que o amigo Fausto dá notícia ao engenheiro acerca do procedimento da mulher, é ficelle que serve unicamente para tiradas declamatórias, a inutilidade de tais recursozinhos se denuncia nas palavras de Fausto, que acha o caso de pouca monta, porquanto Ramires, ao dia seguinte tomaria o vapor para a Europa. Para que, pois, esse amigo oficioso vem envenenar a existência do seu camarada, se daí a 24 horas tudo estaria acabado?
O primeiro ato se arrasta com diálogos longos, fatigantes. A velha, para gabar a ternura que sempre sentiu pela filha, começa por contar ao futuro genro como a filha nasceu e, ano por ano, como se fez a dentição, quando veio a coqueluche, e depois uma moléstia que a levou quase às portas da morte. Chegando aos nove anos, a crônica materna fez ponto, felizmente. Já não era sem tempo...
E a conversa estirada remata com dramáticas afirmações, como prova cabal do grande, imenso, incomensurável amor que os dois corações enlaçava.
O segundo ato são reproduzidos quadros, esses, sim, verdadeiros da vida carioca: uma mocinha canoramente desfrutável, um rapaz discursador, e outra jovem namoradeira, que fareja no viúvo um bom partido.

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